No dia 7 de setembro [de 2004] serão 20 anos em que sentei na cadeirinha onde sentou também Galileo Galilei e Giodano Bruno no Palácio do Santo Ofício (ex-Inquisição) em Roma para defender opiniões do meu livro Igreja: carisma e poder. Ser convocado à presença da mais alta instância doutrinária da Igreja não é um fato corriqueiro na biografia de um teólogo. Reportando-me ao poeta chileno Pablo Neruda, é certamente memorável e, ao mesmo tempo, dilacerador encarnar, por um momento sequer, a razão e o destino de toda uma caminhada de pensamento e de prática eclesial com os pobres.
Subjetivamente é muito oneroso sentir o peso da instituição milenar da Igreja caindo sobre sua cabeça. Mais penoso ainda é sentir os limites desta instituição, pois, percebe que não raro, ela está mais interessada na segurança do que na verdade, mais na manutenção da própria imagem do que servir à causa dos humilhados e condenados da Terra.
Passados vinte anos, vejo que houve aí algo providencial. O fato foi noticiado e comentado nos principais órgãos de comunicação do mundo. Por aí, a opinião pública pôde entrar em contacto com um outro tipo de Igreja, destituida de poder, simples e profética, que faz corpo com os pobres e que, por isso, participa também da maledicência e da perseguição que padecem. Pôde conhecer também uma teologia que coloca a vida no centro, feita no sentido da libertação histórico-social dos oprimidos e não apenas para a edificação interna da galáxia eclesial. A teologia da libertação virou assunto de conversas nas ruas, nos bares e em rodas de intelectuais.
A opinião públicou captou a dimensão ética da libertação: ela concerne às grandes maiorias sofredoras da humanidade. Entendeu a argumentação básica: os cristãos, pelo fato de serem seguidores do Nazareno, torturado e morto na cruz, são urgidos a serem agentes de libertação. É possível uma teologia que nasça deste compromisso, fiel à grande Tradição e articulada contra a injustiça social e em favor de mudanças estruturais. A imagem de Deus que daí surge, é compreensível por todos: Deus está mais interessado na justiça que no rito, mais ligado ao grito do oprimido que às louvações dos piedosos. São as práticas e não as prédicas que contam.
Por fim, por mais que as autoridades se considerem "Eminências Reverendissimas" não deixam de ter as limitações da humana condição. Bem o disse o grande teólogo francês Yves Congar que me defendou no "La Croix"(08.09.84): "O carisma do poder central do Vaticano é o de não ter nenhuma dúvida. Ora, não ter nenhuma dúvida é, a um tempo, magnífico e terrível. É magnífico porque o carisma do centro consiste precisamente em permanecer firme quando tudo ao redor vacila. E é terrível porque, em Roma, estão homens que têm limites de toda espécie, em sua inteligência,no seu vocabulário, em suas referências e no seu ángulo de visão. E pesaram contra Boff". Mas recuso-me a vê-los na ótica do Grande Inquisidor. Do seu jeito, pretendem também eles servir à verdade. No fim, cabe a ela e não a eles a última palavra.
A Roma fui e voltei como teólogo católico. Nenhuma doutrina foi condenada, só "opções que põem em perigo a fé cristã". Mas opções pertencem à ética, não à doutrina. Sou consciente de que nisso tudo fui mero servidor. Fiz aquilo que simplesmente devia fazer, como cabe a um servidor.
Leonardo Boff, Artigo publicado no Jornal do Brasil em 10 de Setembro de 2004; in Artigos, www.leonardoboff.com
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