O processo doutrinário contra o livro Igreja:carisma e poder (Record, 2004 com as atas do processo) não se concluiu com o "diálogo" com o Cardeal inquisidor. Faltava ainda a palavra final do corpo de Cardeais e do Papa. E esta veio em maio de 1985, quando subitamente apareceu na portaria do Convento de Petrópolis onde ensinava, um representante do Núncio Apostólico de Brasília. Entregou-me um livreto, impresso na Poliglota Vaticana: "Notificação sobre o livro Igreja: carisma e poder, ensaios de eclesiologia militante". E disse-me: enquanto rezo na igreja ao lado, leia o texto. Depois conversaremos. Li com vagar. Pareceu-me um pastiche de frases, tiradas daqui e dali, formando um sentido que não reproduzia meu pensamento. Veio o representante do Núncio e me perguntou: aceita ou rejeita o texto? Eu lhe disse, sereno: aceito, porque não sou eu que está ai dentro. Há afirmações que eu também condeno. Mas aceita? insistiu. Condenando, aceito, disse eu. Graças a Deus, suspirou ele. E eu: por que tantas graças a Deus? Porque se não acolhesse o texto, confessou, teríamos um grave problema eclesial e eu lhe imporia as penas canônicas contidas neste envelope.
Com isso esperava que tudo tivesse terminado. Qual não foi a minha supresa quando dias após, por telefone, um alto funcionário do Vaticano me ditava as penas: deposição da cátedra de teologia, de editor da Vozes, de redator da Revista Eclesiástica Brasileira e a imposição de "silêncio obsequioso" por tempo indeterminado pelo qual não poderia falar em público nem publicar mais nada. Firmado no direito canônico, apenas respondi: só acatarei as penas quando o documento oficial chegar às minhas mãos. Demorou 20 dias.
Bispos importantes fizeram-me entender: o problema era mais político que doutrinário. Tratava-se de frear a CNBB em seu ímpeto libertador e eu era apenas o pretexto. Por isso pensadamente declarei: "Prefiro caminhar com a Igreja que, sozinho, com minha teologia". Teria afastado um golpe contra a CNBB e poupado as CEBs e a teologia da libertação.
Depois de onze meses, devido às muitas pressões sobre o Papa, na noite de Páscoa de 1986, fui liberado do silêncio obsequioso e das demais restrições. Livre, continuei minhas múltiplas atividades. Até que durante a Eco-92 no Rio de Janeiro, foi-me comunicado pelo Cardeal Baggio e pelo Geral da Ordem Franciscana que novamente deveria me submeter ao silêncio obsequioso e renunciar ao ensino da teologia. Deveria sair do país e do Continente. Foram-me sugeridos conventos nas Filipinas ou na Coréia. Mesmo lá deveria guardar o silêncio obsequioso e as demais penas.
Pensei comigo: também para um teólogo devem valer os direitos humanos e o direito inalienável de se expressar. Em razão disto, com dor disse: troco de trincheira mas não de combate. Não deixarei a Igreja, mas uma função dentro dela. Continuarei como teólogo e escritor, com um pé no ensino e com o outro nos meios pobres e populares. Assumi a cátedra de Etica, Filosofia da Religião e de questões contemporâneas na UERJ. Em seguida passei a ensinar como professor visitante em algumas universidades estrangeiras. Mas sempre com os pés e a mente aqui, meu campo de ação.
Passados vinte anos, confesso que me esforcei muito para que minha alma não ficasse pequena, consoante o que cantou o poeta: "Tudo vale a pena se a alma não é pequena".
Leonardo Boff, Artigo publicado no Jornal do Brasil em 1 de Outubro de 2004; in Artigos, www.leonardoboff.com
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