8 de dezembro de 2008

A REFORMA ‘EUCARÍSTICA’ (3) A EUCARISTIA, SUA CELEBRAÇÃO E COMPREENSÃO NO SEGUNDO MILÊNIO


2. A EUCARISTIA, SUA CELEBRAÇÃO E COMPREENSÃO NO SEGUNDO MILÊNIO: DESLOCAMENTOS DE EIXO


Como o título já sugere, no segundo milênio constatamos uma série de deslocamentos de eixo na celebração e compreensão da Eucaristia. Vejamos:
2.1. Da centralidade do mistério pascal, do primeiro milênio, passou-se no segundo milênio para a centralidade do Santíssimo Sacramento (como “presença real”) e dos Santos. Mais importante que a eucaristia como celebração memorial da morte e ressurreição do Senhor Jesus, é então a hóstia consagrada e os Santos. Centro não é mais a mesa do Senhor em torno da qual a assembléia se reúne para a celebração pascal, mas o sacrário (por isso, é ele que agora, em muitas igrejas, vem coberto com um baldaquino!) e a imagem do(a) padroeiro(a) no topo do altar-mor. A festa mais importante e imponente do ano não é mais a Páscoa, mas Corpus Christi e a festa do(a) padroeiro(a).
2.2. Vimos que no primeiro milênio a presença real de Cristo era vivenciada (sentida) na globalidade da celebração (na assembléia, na Palavra, na presidência, nas espécies de pão e vinho). No segundo milênio esta presença é vista quase que exclusivamente no pão e no vinho consagrados, mas sobretudo na hóstia consagrada. Esquecem-se as outras presenças!
2.3. Se no primeiro milênio a Eucaristia como celebração memorial da Páscoa é que constituía a principal fonte de espiritualidade cristã, agora (no segundo milênio) a fonte de espiritualidade é a devoção ao Santíssimo Sacramento e aos Santos.
2.4. Se no primeiro milênio a Palavra era levada a sério, no segundo milênio o povo praticamente perdeu o contato com a Palavra. Pois o padre lia as leituras em voz baixa, só para ele, de costas, em latim, lá no altar distante colado à parede. Desaparece a prática de leitores proclamando a Palavra. O lecionário é engolido pelo missal. A homilia (explicação da Palavra ouvida) virou sermão (discurso sobre um tema que pode não ter nada a ver com a Palavra ouvida). O ambão virou púlpito de oratória sacra. E o povo substitui a Palavra pela leitura da vida (muitas vezes lendária) dos Santos.
2.5. Se no primeiro milênio prevalecia a consciência de que a Liturgia da Palavra e a Liturgia eucarística constituíam um só ato de culto, no segundo milênio acontece uma separação entre estes dois momentos celebrativos da mesma Páscoa. Tanto é que o primeiro momento era chamado de “Ante-missa”. Importante era estar presente na hora da Liturgia eucarística. E se cria que bastava fiel chegar na hora do ofertório (como diziam) para dar pleno cumprimento ao preceito dominical.
2.6. Se no primeiro milênio o mistério celebrado é que constituía a principal fonte de inspiração teológica e a teologia eucarística era elaborada principalmente a partir da experiência do mistério de Deus na divina Liturgia, no segundo milênio a teologia eucarística vira especulação racional (por influência da Escolástica) sobre a Eucaristia (existência, essência, efeitos, ministro, sujeito da Eucaristia). Tem-se uma visão por demais “material” da Eucaristia. Esta vira um objeto de estudo, como se fosse uma “coisa” a ser pesquisada, pois se perde sua dimensão celebrativa pascal como fonte de compreensão .
2.7. A própria metodologia de iniciação à vida eucarística e ao conhecimento da Eucaristia mudou. Se antes se aprendia o que é Eucaristia “na igreja” (isto é, a partir do rito, a partir da ação eucarística), agora, no segundo milênio, ensina-se Eucaristia na escola, em salas de aula, a partir de conceitos elaborados pela teologia escolástica. Catequese eucarística virou “decoreba” de conceitos sobre Eucaristia, com tendência a moralismos...
2.8. Lembrávamos também o caráter comunitário e ministerial da celebração eucarística no primeiro milênio. Agora, no segundo milênio, o que predomina é o individualismo religioso. Enquanto o padre faz a “sua” reza lá no altar, o povo (do lado de cá) se entretém com suas devoções (terço, novenas etc.). Multiplicam-se as missas votivas (como cumprimento de promessa). Multiplicam-se as missas privadas (o padre rezando sozinho a missa), pois aumenta consideravelmente a demanda por missas pelos defuntos. E para poder atender à imensa demanda por missas votivas e pelos defuntos, multiplicam-se os padres “altaristas” (ordenados só para rezar missa!), bem como os altares laterais nas igrejas. Hoje, como se vê pelo noticiário da nossa imprensa, missa também é entendida como uma “cerimônia” que se “encomenda”, ou se “promove”, para “homenagear” alguém (vivo ou falecido), ou para celebrar a “memória” de alguma pessoa ou evento importante e, inclusive, para “festejar” e “comemorar” algum aniversário significativo ou abrilhantar algum acontecimento social; uma cerimônia feita por um profissional religioso contratado (bispo ou padre), à qual a gente “assiste”... .
2.9. Se no primeiro milênio a ação eucarística era entendida como um “comer e beber juntos em ação de graças”, agora, no segundo milênio, predomina a prática de cada um fazer a “sua” comunhão devocional, de vez em quando. A comunhão deixa de ser entendida pelo povo como parte integrante de sua participação na ação memorial da Páscoa, para ser entendida mais como devoção pessoal (feita inclusive fora da missa). Aliás, comungar normalmente na missa chegou a ser mesmo coisa muito rara. E daí, que se fez? Substitui-se a comunhão pela adoração da hóstia. Ver e adorar a hóstia na hora da consagração passou a ser para o povo o ponto alto da missa. Por isso (já que o padre celebra de costas), os padres introduzem (na hora da consagração) o gesto de levantar bem alto a hóstia, acima de sua cabeça, para o povo poder vê-la e adorá-la. No primeiro milênio não existia nada disso!... Posteriormente, fazem o mesmo também com o cálice. E mais, adotam o costume de tocar campainhas naquela hora, exatamente para motivar e incentivar a adoração .
2.10. Vimos que no primeiro milênio a celebração eucarística acontecia de forma adaptada às várias culturas com sua linguagem verbal e gestual. Agora, no segundo milênio, impõe-se no ocidente o centralismo romano, a uniformidade romana. Implanta-se uma linguagem verbal (o latim) e gestual rigidamente igual para todas as igrejas do ocidente (com exceção da arquidiocese de Milão), para celebrar a Eucaristia. Por exemplo, nossos índios e negros no Brasil tiveram que “aprender” a assistir a missa rezada em latim! Celebrar a eucaristia (mistério pascal) na língua deles (tupi, guarani, africana etc.), nem pensar! Era a mentalidade da época!...
2.11. Vimos que a liturgia eucarística romana, no primeiro milênio, tinha a característica de ser simples, prática, literariamente elegante, com as orações dirigidas geralmente ao Pai (por Cristo, no Espírito Santo). E não havia manifestações de adoração ao Santíssimo na missa. Na verdade, o que se buscava era garantir o essencial, a saber, a Páscoa. No segundo milênio nós vemos celebração eucarística transformada num cerimonial complicadíssimo, com inúmeros gestos e movimentações dos ministros de um lado para outro, com inúmeras orações em latim ditas em voz baixa. A complicação atinge seu auge com a pompa barroca. A missa solene se transforma num espetáculo para a visão, com aquele imenso retábulo cheio de flores, castiçais, luzes, imagens de anjos e santos, que se levanta sobre a mesa do altar, e com a imagem do(a) padroeiro(a) lá em cima no topo. Sem falar do monumental e luxuoso sacrário em destaque no centro do retábulo, sobre o altar, bem como dos suntuosos paramentos bordados em ouro adornando os ministros sagrados envoltos em nuvens de fumaça de incenso. Os sinos tocam na hora da consagração, chamando todos à adoração da hóstia que se levanta solene. Terminada a consagração, toca também a banda de música, inclusive o hino nacional. Numa palavra, a missa se transforma num espetáculo para a visão. Enquanto isso (enquanto se assiste ao show), o povo também se entretém ouvindo os grandes concertos musicais do coral cantando as célebres “Missas” com acompanhamento de órgão e orquestra. Portanto, a missa vira um espetáculo para os olhos e para os ouvidos, em que os elementos exteriores do culto acabaram por “roubar a cena” (quase que por completo) daquilo que é o cerne da celebração eucarística, a saber, a Páscoa (paixão, morte e ressurreição do Senhor). E as missas não solenes continuam sendo encaradas como uma “reza” do padre que a gente encomenda....
2.12. Enfim, chamávamos a atenção para a preocupação pela qualidade da celebração eucarística no primeiro milênio (qualidade teológica, ritual, espiritual, pascal), procurando fazer ao mesmo tempo a ligação liturgia e vida. No segundo milênio, preocupa-se mais com um discurso teológico intelectual racional do que com uma teologia e espiritualidade pascais que brotam da própria experiência celebrativa. Sem falar na preocupação por demais centrada no aparato externo e rubrical das cerimônias a serem executadas pelos padres. Como vemos no missal de Pio V (1570): Tanto na sua Introdução como nas suas rubricas internas, toda a orientação gira em torno do que o padre rigorosamente deve fazer e como deve executar. Esquece-se, portanto, que existe um povo!... Na há uma preocupação com a participação deste povo na ação memorial pascal. A qualidade teológica e comunitária cede lugar para um exagerado legalismo e rubricismo litúrgicos.
2.13. Dá a impressão que o segundo milênio, do ponto de vista da compreensão e celebração da Eucaristia, foi totalmente negativo. Foi e não foi! Foi, porque a liturgia eucarística como celebração pascal, uma vez colocada longe do alcance do povo, foi parar em segundo plano, fora de eixo. Uma enorme perda! E não foi negativo, porque o povo, longe da liturgia, soube sabiamente criar uma enorme força alternativa de resistência frente às intempéries da vida. Como? Apoiando-se nas práticas devocionais ao Santíssimo Sacramento e aos Santos. Se tivesse sido diferente, como foi no primeiro milênio, com certeza teria sido bem melhor, é claro!...

Frei José Ariovaldo da Silva, OFM

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