21 de março de 2007

A ressurreição de Lázaro

O cristianismo e a criação


CRISTIANISMO, JUDAÍSMO E ISLAMISMO

'O cristianismo e a criação'

Pe. Doutor Joaquim Carreira das Neves

Não vamos tratar, aqui e agora, os problemas científicos sobre a criação, até porque a Bíblia nasceu, cresceu e foi-nos apresentada em tempos que nada tinham a ver com os da ciência. Damos como adquirido a ciência do evolucionismo, tão discutida a partir de Darwin. Muitos problemas continuam em aberto e, perante tais desafios, em meu entender, a única atitude correcta é estarmos abertos ao que é verdadeira ciência. É impressionante sabermos que ainda hoje há milhões de pessoas que, por causa da sua fé e da Bíblia, continuam agarradas à teoria criacionista. A verdadeira ciência nunca faz mal à fé nem à Bíblia: são complementares e não contraditórias.
A teologia bíblica da criação afirma a alteridade da natureza ou do mundo em relação a Deus. A natureza e todas as suas criaturas não são Deus, ao contrário de alguma filosofia grega, que defende a unidade do ser, da filosofia e teologia gnóstica e do movimento religioso moderno NEW AGE.
O livro do Génesis abre o pórtico da sua catedral com duas narrativas bem distintas sobre a criação. A primeira vem no Gn 1, 1-2, 4a e a segunda em Gn 2, 4b - 3, 1-24. Ao contrário dos mitos da Assíria e da Babilónia, em que a criação do mundo e dos humanos nascem do "caos" e vivem na sua dependência e maldade, pois são frutos do deus Marduk, que se serve do cadáver do monstro Tiamat, que ele matou, e do seu sangue, a criação é fruto da Palavra de Deus. Deus é o Totalmente Outro, o Santo, e as suas criaturas vivem nesta alteridade de amor. Só quem acredita desta maneira pode rezar o PAI NOSSO. Entre todas as criaturas, nas duas narrativas, sobressai a criação do homem e da mulher, que, pela sua liberdade e alteridade, pode dizer SIM ou NÃO a Deus.
A primeira narrativa abre e fecha com uma "inclusão bíblica": "No princípio criou Deus os céus e a terra" (1, 1). "Esta é a história dos céus e da terra, quando foram criados" (2, 4a). A narrativa é uma liturgia religiosa, que tem por fim apresentar os três tempos fundamentais da criação: o da natureza exógena (o mundo com os céus de estrelas e planetas, a terra com os seus animais e plantas), o da criação do homem e mulher, à imagem e semelhança de Deus (1, 27) e o da criação do sábado. A narrativa é salpicada com o refrão jussivo do verbo haver: "E Deus disse: Haja...", e com a visão retrospectiva do mesmo Deus sobre a "bondade" da criação: "E Deus viu que era bom...". Depois de ter criado o homem e a mulher, Deus entrega a mesma criação e todo o seu mundo ao mesmo homem-mulher. A partir daqui, eles são com-criadores de Deus. Têm a criança nas mãos para a fazerem crescer e ser feliz: "Sede fecundos e multiplicai-vos e enchei a terra e submetei-a." (1, 18). Será que o homem moderno, cheio de interesses consumistas, entende esta mensagem?
A criação do sábado, com toda a solenidade que Deus lhe confere com os verbos "abençoar" e "santificar", apenas nos diz que o poema tem em vista a liturgia sabática porque Deus , santo, eterno e sem criação, deve ser amado e respeitado. O simples facto do poema usar o nome ELOHIM para dizer Deus, e não YHWH, indicia o tempo tardio da sua composição e a sua origem sacerdotal, do tempo do exílio ou pós-exílio, que eram de dificuldade, pobreza e incerteza. E é precisamente no meio de todas estas dificuldades que o autor bíblico nos apresenta a bondade da criação e a responsabilidade do homem-mulher sobre a mesma.
A segunda narrativa (2, 4b-3, 1-24) é muito diferente da primeira porque, agora, o nome de Deus é YHWH-ELOHIM, e tem alguns contactos com os mitos mesopotâmicos, sobretudo com o Enuma Elish e Atra-hasis. Na Bíblia, o homem é modelado do pó da terra, mas nos mitos supracitados, a argila é amassada juntamente com o sangue e com os restos dos principais deuses maus (Kingu e Wê-ila), aliados de Tiamat. Os deuses, nos seus ciúmes, guerreiam-se e matam-se e é com o sangue dos mortos que criam a humanidade. Os humanos não são mais do que uns títeres de maldade nas mãos dos deuses. Mas na Bíblia, o homem é fruto da terra e do "sopro" de Deus. É como que um "beijo" de Deus. O homem é colocado por Deus num éden (jardim ou várzea cheia de água, árvores e frutos), com a permissão de comer de todas as suas maravilhas, menos da árvore do "conhecimento do bem e do mal".
As imagens do "éden", "árvore do conhecimento do bem e do mal", "árvore da vida", "costela" de Adão, "cobra",etc., devem ser entendidas como imagens, símbolos, e nada mais. O que importa é o seu significado. Deus dá ao homem um "auxílio", que é a mulher, porque o homem, entre os animais, que lhe pertencem pelo facto de os ter nomeado, vivia na maior das solidões. Nenhum animal era semelhante a ele. O "auxílio" (ézer, no masc.) é a mulher: "osso dos meus ossos, / carne da minha carne. / Será chamada 'ishsha (mulher) porque foi tirada de 'ish (homem)". Homem e mulher perfazem uma unidade indissolúvel. Foram postos no "eden" para adorarem Deus, mas a "cobra", que é o símbolo dos deuses da fertilidade, atrai para o seu mundo a mulher e, com ela, o homem. Não se trata de explicar a origem do mal, porque não há mal sem liberdade, mas de mostrar o poder atractivo e idolátrico de poder dizer NÃO a Deus, para dizer SIM aos ídolos. E quando o homem e a mulher descobrem o seu pecado, vêem que estão nus, têm medo de Deus e escondem-se dele. Deus retira o homem e a mulher do "éden" para não continuarem a endeusar-se, e coloca-os na realidade concreta da vida humana: o homem trabalha a terra com o suor do seu rosto e a mulher dará à luz com sofrimento.
Ao fim e ao cabo, a narrativa é uma etiologia ou narrativa justificativa da história de Israel, antes do povo possuir a Terra Prometida, durante a Terra Prometida, antes do exílio e durante o exílio. O homem-mulher devia adorar o verdadeiro Deus no "éden" da Terra Prometida, mas não o fez. Quis endeusar-se, seguiu o mundo apetecível da cobra, isto é, do politeísmo
dos Baales e demais deuses e deusas da fertilidade. Deus expulsa-os para o exílio, mas não os abandona porque a descendência do homem-mulher há-de vencer o sortilégio idolátrico da cobra.
A narrativa apresenta as grande interrogações humanas, de ontem e hoje: Como compreender o mal? A sua atracção? Qual o porquê da dureza da vida e das dores da mulher para dar à luz? Como compreender o exílio e a vida errante de eterna busca do homem? Como compreender a morte?
Saindo das narrativas do Génesis, e para melhor compreendermos a criação, temos que ler com atenção o Deutero Isaías, especialmente Is 40, 22. 26; 44, 6; 45, 8. 12. 48; 48, 13; 51, 12-16; 54, 5. As afirmações sobre YHWH como único criador, vêm sempre misturadas com a história da salvação no exílio e a partir do exílio. Nunca são afirmações de filosofia metafísica ou das ciências da natureza. O mesmo se diga em relação à "nova criação" de Jesus e do Espírito que nos deixou: Jo 1, 1-18; Mc 1, 1; 1, 12-13; Hb 9, 1-14; Ap 21-22; Rm 8, 18-22; Jo 3, 3-6; Ac 2,1-4.
Pe. Joaquim Carreira das Neves, OFM
in http://www.franciscanos.com.pt/

20 de março de 2007






BAKUNIN

§ 1. Reacção e Revolução


Mikhail Bakunin (Pryamukhino, Rússia, 1814 – Bern 1876) foi um revolucionário cujas teorias contribuíram para o desenvolvimento do conceito de anarquismo, utilizando conceitos e linguagem retirados do léxico cristão. Podemos considerá-lo em certa medida como herdeiro do pensamento milenarista.

Bakunin considera que a “democracia é uma religião” e que os cidadãos se terão de tornar religiosos e que terão de aplicar esses mesmos princípios na vida quotidiana.

É evidente que estas ideias de Bakunin sobre a existência revolucionária democrática trazem as marcas do passado cristão. Conhecemos a escatologia do "povo de Deus." "a reversão total do estado do mundo" vem das novas “tábuas da lei” no Antigo Testamento; a "revelação, viva e vivificante " que traz "um céu novo e uma terra nova" é um anúncio messiânico; a distinção entre agitar ideias e realizá-las na "vida concreta" reflecte a metanóia cristã; "a vida original, nova" é a renovatio Evangelica. Toda a atmosfera de uma nova revelação iminente lembra as expectativas dos sectários ingleses do séc. XVII sobre o "Deus que virá” estabelecer o reino na terra.
Além desta estrutura formal da escatologia cristã, há uma outra continuidade com o cristianismo. A "liberdade do espírito" evocada é uma realização final do espírito cristão. Bakunin vê a luta pela liberdade como inerente à cristandade católica primitiva. O princípio da liberdade é "a fonte de todas as heresias". Em geral, a libertação das cadeias que oprimem os espíritos livres é o significado da história. Da liberdade nasceu a heresia vitoriosa do Protestantismo, inerente ao Catolicismo primitivo até se tornar independente. O presente atingiu uma nova época crítica, um futuro além do Catolicismo e do Protestantismo.

Sendo o Catolicismo uma “glória ultrapassada” e o Protestantismo “uma anarquia de seitas” vem Bakunin, (como um novo S. João Baptista – na expressão de Voegelin) propor criar o terceiro reino da liberdade: “Sabeis que, de acordo com o seu destino final, a humanidade só encontrará paz e serenidade num princípio universal prático que unifique poderosamente a miríade de manifestações da vida espiritual” (in “A reacção na Alemanha”)

Este princípio universal prático é uma religião sem Deus: é criada a partir do homem e a salvação vem do espírito do homem. Mais concretamente do espírito de Bakunin, ao mesmo tempo profeta e “dux”, autor dos escritos (sagrados?) que conduzem o seu povo (as massas) para o terceiro reino da liberdade.

Religião sem Deus que porém se obriga a uma das máximas do Cristianismo: "Só nós, que somos apelidados de inimigos da religião cristã, podemos e devemos praticar o amor concreto mesmo na luta mais calorosa, o mandamento mais elevado de Cristo e a essência da verdadeira Cristandade." (in “A reacção na Alemanha”)

Em resumo, identificamos em Bakunin: (1) a ausência de uma ideia positiva da ordem, (2) a identificação da liberdade com "a paixão alegre da destruição" (3) a descoberta das "massas" como agente histórico de destruição.
Pessoalmente, considero que Bakunin se via a si próprio como um novo Moisés: Ele é aquele que vai levar o seu povo – as massas – para a Terra Prometida – o terceiro reino depois do Cristianismo e do Protestantismo.

Deus sabe onde me conduzirá. Eu sinto somente que nunca abdicarei dos meus passos e que nunca serei desleal às minhas convicções. Nisto reside toda a minha força e dignidade; Esta é a minha Confissão.” (Carta a Annenkov, Bruxelas, 28 de Dezembro de 1847).

Tal como Moisés não irá entrar na Terra Prometida. O revolucionário (ou profeta ou dux) descobre o caminho – a senda da destruição:
A destruição é o trabalho de uma geração de sacrifício; os revolucionários só podem destruir; a edificação "de um mundo novo e glorioso em que todas as dissonâncias actuais serão dissolvidas na unidade harmoniosa" fica para os que virão depois.

§2.A Confissão de Bakunin

Em 1851, Bakunin encontra-se preso na fortaleza de Pedro e Paulo a aguardar a deportação para a Sibéria, quando foi convidado pelo Czar a escrever uma Confissão dos seus pecados.

Obra complexa, a Confissão denota contradições nela mesma, e contradições com cartas secretas que enviou da prisão: os sentimentos de Bakunin são complexos; a carta secreta mostrava o rebelde, a Confissão é um misto de sinceridade e arrependimento.

Nota-se ali uma certa admiração pelo Czar: No artigo Reacção em Alemanha, de 1842, Bakunin distinguiu entre dois tipos de reaccionários; os consistentes e os comprometidos, ou mediadores. Despreza os segundos mas admira os primeiros.

Obviamente considera o Czar um reaccionário consistente. Aliás escreve nas Confissões: "Apesar das minhas convicções democráticas, adorei-vos profundamente nos últimos anos, contra minha vontade. Não só eu mas muitos outros, Polacos e Europeus em geral, compreenderam como sois o único, entre as cabeças coroadas, que preservou a fé na vocação imperial."

Bakunin nunca se arrependeu da sua existência revolucionária; arrependeu-se da futilidade dos seus esforços.

Esta desilusão tem muito a ver com o crescimento de grupos e seitas secretas comunistas na década de 40 do séc XVIII: para ele o comunismo era um sintoma de deterioração social, mas não o caminho de salvação que preconizava.

Atribuía ao crescimento do comunismo um instinto de revolta das massas contra a sociedade do seu tempo.

Bakunin foi forçado à existência revolucionária para ter um campo adequado de acção. A revolução no Ocidente seria o sinal para a revolução russa onde poderia desempenhar um papel activo. A intelligentsia russa do séc. XIX cresceu como uma classe isolada porque a ordem social e política (elogiar o governo chegou a ser considerado uma insolência subversiva) não deixava espaço para a acção construtiva de homens com inteligência, temperamento, instrução e vontade moral de reformar. É um lugar comum afirmar que um governo está em perigo quando os intelectuais estão na oposição. Mas os intelectuais não entram para a oposição por sua própria escolha mas sim porque nada mais vêem de digno para fazer. Uma ordem social alcança a fase crítica quando os homens de integridade intelectual e moral têm que se rebaixar para participar na vida pública. O insulto mais grave à personalidade humana é a negação da oportunidade que as qualidades se transformem em força activa na sociedade. Quando a corrupção afasta os membros mais valiosos da sociedade, a consequência será, conforme os tipos de personalidade, a passagem à contemplação ou a resistência activa mediante a destruição e criminalidade revolucionárias.

Bakunin move-se por uma fé voluntarista: "Só tenho um aliado: Fé! Digo a mim mesmo que a fé move montanhas, supera obstáculos, derrota o invencível e possibilita o impossível; a fé é metade da vitória e metade do sucesso; completada pela vontade poderosa cria as circunstâncias, amadurece os homens, junta-os e une-os.... Numa palavra: eu quero acreditar, e eu quero que os outros acreditem."

Trata-se, talvez, da mais perfeita descrição da mágica do mal, ou de como criar a realidade a partir de nada. A fé voluntarista opõe-se à vontade crente, do cristão. Esta "fé voluntarista" manifesta-se em Bakunin na invenção prodigiosa de sociedades revolucionárias imaginárias mas com resultados tangíveis. A fé e a imaginação entram no curso da história, criam as circunstâncias e produzem efeitos incríveis. É a primeira aparição da magia negra que regressará com a “magia radical” de Nietzsche", no persistência com que Lenine agarra o kairos e no poder e “Vitória de Fé” de Hitler.
Bakunin defende um imperialismo pan eslavista: começando por uma revolução russa pretende a grande libertação dos Eslavos (todos os territórios Eslavos e Polacos em posse da Alemanha, húngaros, romenos, moldavos e gregos com capital em Constantinopla).

No final, acabamos por ter aqui a denominada Europa de Leste, com excepção dos gregos e de Constantinopla.

Aliás chega a apelar ao Czar nas Confissões para realizar essa federação pan eslavista.

§ 3. O anarquismo

Quando a ordem política entope os canais legítimos de acção construtiva, as inteligências activas ficam num impasse. Quando se juntam a experiência da culpa pela miséria social, a vontade de reformar e a experiência de impotência, um indivíduo de moral exigente podes ser levado ao desejo de auto-sacrifício. O acto terrorista é um sacrifício em sentido duplo: o terrorista arrisca a vida fisicamente, porque será executado se for apanhado; em segundo lugar, e mais importante, o terrorista sacrifica a sua personalidade moral porque comete um assassinato.

O terrorismo como modelo moral é um sintoma da doença em que o mal assume a forma de espiritualidade.

Com Kropotkin torna-se explícita a necessidade de destruição das instituições: Ao criarem a dependência do homem, as instituições políticas e económicas transformaram-se em fonte do mal; a sua destruição por uma revolta social permitirá reconstruir a sociedade.

Esta posição esclarece a necessidade sentida por Bakunin na destruição das instituições: a luta dele contra o Cristianismo não será mais uma luta contra a instituição Igreja?

Uma terceira posição quanto ao anarquismo é a de Tolstoi: Tolstoi fundou o anarquismo numa ética cristã evangélica e achava que a salvação não resulta de uma mudança de instituições; as novas instituições não substituem a mudança do coração. A reforma não resulta de conspirações e revoluções; tem que ser efectuada por esclarecimento e persuasão, despertando as consciências, pelo exemplo de vida e, se necessário, pela resistência passiva aos mandamentos do estado não cristão.

Gandhi aproveita das ideias de Tolstoi um conhecimento da rebelião civil e resistência passiva como armas políticas contra as autoridades governamentais.

Tal como Tolstoi, Gandhi introduz a ética escatológica como uma arma política; a pequena diferença é que Tolstoi assentava o seu anarquismo no prestígio do Evangelho, enquanto Gandhi adquiriu uma auréola de santidade oriental.

§4. Fundar o reino novo

Bakunin era prodigioso a montar organizações, sobre as quais não se sabe se existiam de facto ou apenas na cabeça dele: Até que ponto essas organizações existiam realmente ou somente na sua imaginação nem sempre se pode comprovar.

Em 1868 funda a Aliança Internacional Social-Democrata que tinha como objectivo ser o Estado Maior da 1ª Internacional, sob a capa de formar um núcleo de revolucionários.

Aí choca – mais uma vez - com Marx (já chocavam no campo das ideias: Marx quer ordem / Bakunin quer destruição; Marx quer um sistema científico / Bakunin acusa-o de autoritarismo; Marx fala proletariado e sobretudo dos trabalhadores e ainda dentro destes dos operários / Bakunin refere as massas; Nos anos 60,(século XIX) quando Marx inicia a organização internacional do proletariado, Bakunin ainda escreve panfletos a glorificar o salteador russo.)

Bakunin e Marx queriam um movimento revolucionário para homens sem país, e por meio da organização revolucionária queriam criar um país para este povo desabrigado.

A ideia de um homem sem país cuja pátria é a revolução não surge entre trabalhadores; é uma projecção do intelectual isolado que se transforma em líder das massas.

Marx criou uma doutrina que servia como a escrita sagrada do apostolado; como organizador foi fraco. Lenine refinou a doutrina, e criou uma organização centralizada implacável. Como estadista aproveitou bem o seu momento, enxertando a revolução dos trabalhadores internacionais na revolução camponesa russa. Estaline constrói a revolução internacional dentro do seu povo, no que se chama por vezes o "Thermidor" da revolução russa. Mas como movimento internacional, a revolução chegara ao fim; os partidos comunistas nos países ocidentais são instrumentos do novo estado russo.

Diferente era a posição de Bakunin: Bakunin confia no carisma. Mesmo quando a concepção é ditatorial e centralista quer a transformação da personalidade. Além disso, nunca concebeu um “estado dentro do estado” que fosse o futuro núcleo do poder após um golpe de estado; criou instrumentos para a destruição das instituições existentes que, após a vitória, seriam substituídas pela vida federal livre do novo povo revolucionário.

Dado o desinteresse pelas instituições permanentes, a actividade de Bakunin move-se na atmosfera do fantástico.[…] O elemento do fantástico radica na doença do espírito que constitui a crise revolucionária e relaciona-se com a “magia radical”. Na existência espiritual saudável, a acção é moldada pela substância espiritual que pretende comunicar, transformando a substância potencial em realmente comum. Por exemplo, na República, Platão aguarda pela receptividade à sua visão mística; quando tentou concretamente fundar uma cidade modelo o filósofo rei ficou-se pelos limites da academia. Em Bakunin, a acção é determinada pela vontade de uma existência pseudo espiritual; como falta a substância orientadora a comunicar, as tentativas sucedem-se de maneira irresponsável.

Nas suas organizações Bakunin vai criar estruturas piramidais sucessivas, as quais vão ser utilizadas por Marx: a organização em pirâmide ressurge na situação revolucionária: (1) a massa da humanidade reaccionária, que não serve para nada; (2) a parte eleita da humanidade, os "trabalhadores”, que são o sal da terra; (3) os operários, que são o grupo mais avançado dos trabalhadores; (4) o partido comunista, vanguarda do proletariado; (5) o círculo interno dos líderes dentro do partido, que culmina no politburo; (6) a estratosfera dos pais fundadores, Marx e Lenin.

§ 5. O caso Nechaiev

A revolução tem um começo e um fim, a fase de destruição e a de reconstrução. O revolucionário verdadeiro não tem planos de reconstrução. Ao chegar o momento amargo da luta; "o nosso alvo é a destruição completa de todos os laços sociais." A geração actual tem que destruir as circunstâncias abomináveis em que vive; a reconstrução é tarefa reservada para forças mais puras que hão-de surgir." Para o revolucionário, é um crime contemplar o futuro nebuloso; seria um obstáculo ao curso da destruição. "Numa causa prática, seria um abuso inútil do espírito." É preciso dedicar-se à destruição permanente, num crescendo que não deixará em pé qualquer forma social. "Chamarão a isto terrorismo! Mas devemos permanecer indiferentes a esses uivos e não participar em acordos com os que estão destinados a morrer!" (in "Os Princípios da Revolução")

Bakunin sondou as profundezas da existência negativa e compreendeu o salto místico do mundo para o paraíso. A destruição total é a contrapartida intramundana da "morte para o mundo" e a santificação da vida em preparação para a graça redentora da morte. A aniquilação intramundana não liquida apenas o mundo a destruir; também absorve a personalidade do revolucionário. Para o revolucionário, a acção significa a morte para o mundo velho mas, ao contrário do cristão, não verá o paraíso futuro. O sacrifício da existência não serve a purificação e a salvação da alma; a contracção revolucionária é o clímax da busca intramundana de imortalidade. Mas o revolucionário não vive para a fama na posteridade como os estadistas do renascimento e os homens de letras; assume o papel do salvador que inverte a queda e redime o mal. Mais que um filho, é um pai; Bakunin não promete o reino de Deus no além; promete o paraíso terreno. Deus expulsou o homem do paraíso; Bakunin irá devolvê-lo.

Alguns corolários do pensamento de Bakunin:
A religião é um instrumento de degradação - deve ser removida.
A propriedade privada é um instrumento de exploração – fora com a propriedade privada dos instrumentos da produção.
A burocracia é um instrumento de opressão – fora com o salariat.
O Estado é a fonte do mal – fora com o Estado.
A autoridade em geral restringe a liberdade – fora com a teologia, a ciência institucionalizada (contra Comte), e a liderança política institucionalizada (contra Mazzini).
Insistência de Bakunin no federalismo como a lei estrutural da sociedade futura.
Se dermos ao homem a possibilidade de praticar o mal, se lhe alimentarmos a vaidade, a ambição, e a cupidez à custa de outro, o homem praticará o mal.

O Satanismo de Bakunin

A primeira ideia de Dieu et l'Ètat e do apêndice ao Fantome Divin é a inversão satânica da Queda. Bakunin inverte toda a narrativa do Génesis: "Deus quis privar o homem da consciência de si; quis que ele permanecesse eternamente um animal de quatro patas, prostrado perante Deus eterno, seu criador e mestre. Mas então veio Satã, revolucionário, o eterno revoltado, o primeiro “libre penseur” e emancipador do mundo. Envergonha o homem pela sua ignorância e obediência bestial; emancipa-o e imprime-lhe na fronte o selo da liberdade e da humanidade, persuadindo-o a desobedecer e comer o fruto do conhecimento." E Bakunin continua: "O homem é emancipado (…) A história do desenvolvimento humano foi iniciada pela desobediência e o conhecimento (ciência), ou seja, pela revolta e pelo pensamento.”

Até ao fim, Bakunin recusa definir qualquer lei ou ideia articulada da sociedade. A ordem é determinada por sucessivos acordos da alma individual revoltada com os sentimentos das massas. A liberdade permanece em tensão entre a revolução contra a autoridade e a imersão no povo. Nas últimas obras, Bakunin recorre frequentemente à imagem do fluxo da natureza: a humanidade na história é um mar em movimento e o homem está na crista da onda. Talvez este misticismo final da revolução como imersão no fluxo natural da humanidade seja especificamente russo. Mas a última palavra de Bakunin é idêntica à primeira em 1842: o “retorno interno” deve ser substituído pela revolução política; a orientação espiritual pelos "interesses reais" das massas; e a renovação da alma pela imersão na revolução popular.

Nota: todos os itálicos sem indicação de obra ou autor são do livro e capítulo em análise.

Uma leitura de Eric Voegelin “A Idade Contemporânea”, Livro 26, Cap.4 - Existência Revolucionária: Bakunin

As Religiões Políticas


Uma consideração religiosa do nacional-socialismo deveria partir do pressuposto que possa existir Mal no mundo; e não o Mal como um modo deficiente do ser, como um negativo, mas como uma verdadeira substância e uma força efectiva no mundo. Face a uma tal substância, não apenas moralmente má, mas também religiosamente maléfica, satânica, a oposição não pode ser conduzida senão a partir de uma força igualmente poderosa, mas religiosamente boa. Não se pode combater uma força satânica somente com moralidade e sentimentos de humanidade.

Eric Voegelin, Prefácio de Dezembro de 1938