9 de dezembro de 2007

Sobre a Saudade


Saudade… a ambição, a cobiça, o instinto do comércio com o impulso nómada empurrando as velas das nossas naus, a Índia ao longe, as tormentas vencidas e a nostalgia de Portugal ensombrando as paisagens da Índia conquistada: movimento pendular do coração lusíada entre a pátria e todas as Índias que se atingem e aquela Índia de miragem que não é nenhuma destas e sempre se procura e deseja, quando estas se nos deparam; incessante movimento do coração do homem entre as terras e os céus visíveis e um Céu e uma Terra que apenas se pressentem na misteriosa polarização da nossa alma.
[...]
A Índia das nossas miragens não é nenhuma das que se atingem.

Leonardo Coimbra, Sobre a Saudade

A Graça

“O estado de graça é o sentimento de presença universal.
Estar em graça é olhar o Universo daquele invisível centro de amor, que é o seio de Deus.
Estar em graça é parar suspenso no meio do ruído a ouvir vozes das bandas do Silêncio.
Estar em graça é ir devagar na Solidão a conversar com o invisível, a encher de humanas palavras amorosas todo o Espaço sem voz.
Na Solidão e no Silêncio, ali onde a nossa atenção se volta no sentido do oculto, a Graça tece, de tenuíssimos e misteriosos fios, as ligações que prendem a multidão rumorosa, medita o verbo, que é o pão e o amor de todas as bocas.
E a Graça, em excessivo além dos sentidos, é simplesmente a absoluta e infinita presença. Enche a Solidão e Silêncio, mas de presença inefável, universal contacto amoroso, onde as formas se diluem e a comoção interior é a fremente quietação dum beijo sem lábios.
Tão para além dos sentidos, tão pura presença é a graça que todo o movimento se encerra, e a plena posse é, agora, o perfeito e absoluto contacto.
É a serenidade em subtil e invisível corpo de amor, vagueando no Silêncio e na Solidão.
De tudo o que para nós é a vida, resta a Presença, sem formas, nem limites… Tocada a Presença, logo a solidão se faz companhia!
Essa presença é o Amor, e, por isso, o seu corpo subtil é de femininas formas, delicado e etéreo. A Graça nós a vemos, para além dos olhos, imponderável corpo de Mulher, vagueando na imensa Solidão do Espaço.”

Leonardo Coimbra, "A Alegria, a Dor e a Graça" in "Obras Completas", Vol. III, págs. 200-201, Lisboa, UCP/INCM, 2006

26 de novembro de 2007

O Cego de Maio


Conheceis o Cego de Maio?
Foi um poveiro. Era um Neptuno baptizado. Não era o tridente a arma com que comandava as ondas, mas a sua alma plena dum superior destino.
Sabei que aos gritos de socorro que o náufrago erguia num clamor anónimo, respondia no seu coração um eco de lembranças piedosas, de orfandades, de viuvezes, e na sua alma nascia o direito de emendar a existência, a certeza da sua superioridade de comoção sobre a bruteza do oceano convulso.
E num barquinho ele se partia, assaltado pelas ondas, guardado pela certeza da sua missão...
Voltava coberto de espuma, a sua alma era a Alegria do dever omnipotente.
Esse herói era sereno, duma mansidão patriarcal.
Certo dia, um pescador importunou-o a ponto do Cego lhe prometer castigo.
Um filho do importuno, puxando-lhe pelo casaco, disse – Cego, não batas no meu paizinho…
O herói tomou a criança, beijou-a e largou a fugir precipitadamente…
Não conheço gesto humano que tanto valha, quer dizer, que tão claramente exiba a divindade dramática do homem.
Há frases, isto é um acto.
Nunca a carne foi tão nitidamente pensamento, ansiedade metafísica.
Homens houve que souberam pôr, em concreto, a alma acima do corpo.
Sob os olhos da Alegria originária, da unidade amorosa, aqui, é na própria carne que se passa o drama, é ela que actua este pensamento: foge à tentação, foge de ti mesma…
Maravilhoso exemplo de complexidade das relações entre o ser e a aparência: o herói quer em si a alma infantil a que obedece e vê que só na ausência do corpo ele possuirá a sua presença.Quem ensinou a este rude pescador a dialéctica da aparência e da realidade?
E, no entretanto, onde a aparência inverte, ele sabe, em carne e osso, refazer a realidade!
As recônditas harmonias das cousas descobertas pelo pensamento, as harmonias do pensamento e das cousas, o mundo resolvendo-se em teorias científicas, a ciência adivinhando o mundo, tudo é ultrapassado pela simples atitude dum humilde homem do mar, que quer estar de acordo com uma criança!

Leonardo Coimbra, "A Alegria, a Dor e a Graça" in "Obras Completas", Vol. III, págs. 46-47, Lisboa, UCP/INCM, 2006

20 de novembro de 2007

Agostinho - Confissões


E, admoestado a voltar daí para mim mesmo, entrei no mais íntimo de mim, guiado por ti, e consegui, porque te fizeste meu auxílio. Entrei e vi com o olhar da minha alma, seja ele qual for, acima do mesmo olhar da minha alma, acima da minha mente, uma luz imutável, não esta vulgar e visível a toda a carne, nem era uma maior como que do mesmo género, como se ela brilhasse muito e muito mais claramente e ocupasse tudo com a sua grandeza. Ela não era isto mas outra coisa, outra coisa muito diferente de todas essas, nem tão-pouco estava acima da minha mente como o azeite sobre a água, nem como o céu sobre a terra, mas era superior a mim, porque ela própria me fez, e eu inferior, porque feito por ela. Quem conhece a verdade, conhece-a, e quem a conhece, conhece a eternidade. O amor conhece-a. Oh, eterna verdade e verdadeiro amor e amorosa eternidade. Tu és o meu Deus, por ti suspiro dia e noite. E logo que te conheci, tu arrebataste-me para que eu visse que é aquilo que via e que eu não era ainda de molde a poder ver. E deslumbraste a fraqueza do meu olhar, brilhando intensamente sobre mim, e estremeci de amor e horror: e descobri que eu estava longe de ti, numa região de dissemelhança, como se ouvisse a tua voz vinda do alto: «Eu sou o alimento dos adultos: cresce e comer-me-ás. Tu não me mudarás em ti, como o alimento da tua carne, mas tu serás mudado em mim.» E reconheci que por causa da iniquidade corrigiste o homem e fizeste consumir-se a minha alma como uma aranha, e disse: «Porventura nada é verdade, já que ela não está difundida pelos espaços dos lugares, nem finitos nem infinitos?» E tu clamaste de longe: «Pelo contrário eu sou o que sou.» E ouvi, tal como se ouve no coração, e já não havia absolutamente nenhuma razão para duvidar, e mais facilmente duvidaria de que vivo do que da existência da verdade, a qual se apreende e entende nas coisas que foram criadas.

19 de novembro de 2007

A natureza do direito - 2


A existência humana é ontologicamente social, não obstante todos os conflitos entre o homem e a força impessoal do campo social, em que ele existe como uma parte. A existência na sociedade, por força do nascimento e educação numa família, é ontologicamente, não por escolha, a maneira da existência humana. A alternativa à existência numa sociedade concreta – além de não ter nascido de todo, ou de ter cometido suicídio – não é a existência solitária, mas a existência numa outra sociedade concreta. A organização da vida pessoal do homem em sintonia com a verdade da ordem apenas é possível dentro da estrutura da ordem social. Uma sociedade tem uma raison d’être, por conseguinte, apenas na medida em que ela permite aos seus membros ordenar as suas vidas na verdade.
Eric Voegelin

18 de novembro de 2007

Comunidades cristãs saudaram Dalai Lama

Vossa Santidade,

É uma honra para mim, dirigir-me a vós em nome das comunidades cristãs em Lisboa. Elas estão aqui representadas pelos Pe. Alexandre Bonito, da Igreja Ortodoxa, Pe. Diamantino Lemos, da Igreja Lusitana (Comunhão Anglicana), Dr. David Valente, Secretário Geral da Igreja Presbiteriana, e eu próprio, da Igreja Católica. Desejo-lhe as mais calorosas boas-vindas, da parte do Cardeal Patriarca, D. José Policarpo, que se recorda com amizade do vosso ultimo encontro, aquando da vossa última visita, em 2001.

1. A vossa presença aqui - este encontro de representantes de várias tradições religiosas na mesquita central de Lisboa - é um notável sinal dos tempos em que vivemos. As coisas mudam com grande velocidade. E estas mudanças trazem consigo medo e insegurança para alguns, e entusiasmo para outros que buscam algo de novo. Penso que este encontro apela a ambas estas tendências, dentro das nossas comunidades. Reconhecemos as nossas diferenças. Elas são por vezes profundas e significativas. Não desejamos escamoteá-las. Cada uma das nossas tradições é uma peça única do nosso património cultural mundial, trazendo com ela séculos de sabedoria e espiritualidade. Mas, apesar de todas as nossas diferenças, tensões e, por vezes, inimizades, fomos capazes hoje de dar uns aos outros a mão da amizade, e de exprimir o nosso compromisso comum com a construção da paz entre os povos do mundo.

2. Rezo para que as Igrejas Cristãs em geral, e a Igreja Católica em Portugal, tenham um coração terno e humilde, para que sejamos capazes de acolher entre nós, como irmãos e irmãs em Deus, todos os imigrantes que buscam uma vida melhor, qualquer que seja a sua religião. Desejo que sigamos o caminho da rectidão.

3. Rezo também para que Vossa Santidade seja abençoada, e que o vosso coração esteja sempre pleno de luz. Que a paz esteja convosco e com o vosso povo no Tibete.

Discurso feito na Mesquita Central de Lisboa, pelo Padre Peter Stilwell

Ciência versus Religião por Sto Agostinho

Quando me apercebo de que um cristão, este ou aquele irmão, ignora essas coisas e as confunde umas com as outras, ouço pacientemente esse homem a expor a sua opinião e não vejo em que lhe é prejudicial se não sabe, porventura, o lugar e o modo de ser da criatura corporal, desde que não creia em coisas indignas a teu respeito, Senhor, criador do universo. Prejudica-o, porém, se pensa que isto pertence à essência da doutrina da piedade e ousa afirmar pertinazmente aquilo que ignora. Mas mesmo tal enfermidade é suportada pela mãe caridade no berço da fé, até que o homem novo chegue ao estado de homem perfeito e não possa ser arrastado pelo vento de qualquer doutrina.
Santo Agostinho, Confissões, Livro V, V. 9

9 de novembro de 2007

Admitir o óbvio

De todos os lados da sociedade dita laica, se ataca e menospreza o papel da religião e da Igreja Católica. Sabe bem de vez em quando ler o que os muitos católicos já sabem... o papel da Igreja é crucial.

Aqui fica um trecho da notícia no DN de hoje sobre o papel da Igreja nas emergências e na assistência aos mais necessitados.

Em 1998, durante o conflito na Guiné-Bissau, a Igreja Católica foi, durante
algumas semanas, a única organização a funcionar de forma eficaz, em vários
pontos do país. A actuação dos religiosos, nessa altura, salvou numerosas vidas,
sobretudo de crianças, o elo mais fraco nestes conflitos.

8 de outubro de 2007

Birmânia


O mundo inteiro rende-se à determinação dos monges budistas na luta pela democracia e pela libertação do povo Birmanês das garras de uma ditadura que andou demasiado tempo esquecida dos telejornais do mundo.

Os suspeitos do costume, a China ateia comunista e a Rússia de senhorial de Putin estão a impedir a aprovação de decisões mais duras no Conselho de Segurança, não porque verdadeiramente acreditam numa solução pacífica, mas porque tem consciência que não se pode abrir precedentes para serem alvos de acusações idênticas.

O Papa já veio pedir especial atenção por parte das instituições internacionais e a Pax Christi, Movimento Católico Internacional para a Paz, fundado em França em 1945 com o objectivo de encorajar a reconciliação e a paz no seio das nações feridas pela II Guerra Mundial, já fez chegar uma carta ao Secretário-geral das Nações Unidas, onde expressou a sua profunda preocupação relativamente à escalada de violência em Myanmar, e à situação dos manifestantes não-violentos.

Em regimes democráticos, sou apologista não só da separação da Igreja e do Estado mas também do distanciamento da Igreja da vida civil e governamental. A opção política de cada cidadão deve ser livre, consciente e sem abusos de influências. De um modo geral, estou em crer que no presente, a Igreja Católica em Portugal tem uma postura bastante salutar e aberta. Não se queira é pedir que a Igreja não exerça influência naqueles que livremente decidem fazer parte dela e ou que não possa opinar sobre o mundo de que faz parte e denunciar situações de abuso e injustiça ou que simplesmente não concorda. A isso se chama democracia.

Por isso mesmo, em casos como o que se vive hoje em dia na Birmânia acredito que a religião deve ter um papel activo e preponderante na salvaguarda da liberdade, dos direitos fundamentais do homem e da democracia. Por isso só posso aplaudir esta ingerência dos monges budistas birmaneses. Religião que não defenda estes valores está enganada e deve fazer por corrigir. Se tivesse havido mais D. Antonios Ferreira, de certeza que a imagem da Igreja hoje era diferente.

Apesar das demasiadas vezes que historicamente vimos a Hierarquia da Igreja Católica premiscuamente ao lado dos ricos e dos opressores, há que lembrar que foi o Cristianismo que ajudou a rasgar a cortina de ferro e que em muitos outros momentos da História mundial havia um padre anónimo que dava a sua vida pelo mais fraco e pelo mais pobre. Quem me dera a mim que pudesse ver mais vezes a Igreja Católica ter coragem de sair à rua como estes monges budistas o estão a fazer para defender causas como estas.

A título de curiosidade, dos grandes críticos da dita “permissividade” e do tratamento privilegiado dos governantes portugueses com que o clero português ou daqueles que abanam bandeiras contra a religião e insultam slogans de que esta é sinónimo de falta de liberdade, de opressão e ignorância só silêncio...

Palavras para quê, não é?
Em comunhão

30 de setembro de 2007

Existe um velho provérbio húngaro que diz que na cova do lobo não há ateus, por isso julgo que não existe quem não acredite. O nada não existe na física ou na biologia e quando se lêem os grandes físicos entende-se como eram homens profundamente crentes, que chegaram a Deus através da física e da matemática e que falavam de Deus de uma maneira fascinante. A minha relação é a de um espírito naturalmente religioso, cada vez mais, não no sentido desta ou daquela igreja mas porque me parece que a ideia de Deus é óbvia. Cada vez mais o é para mim. É um bocado como diz Einstein, quando afirma que Deus não joga aos dados.

É claro que me zango com Deus porque permite o sofrimento, mas talvez os seus desígnios tenham tais profundezas que não atinjo. O sofrimento sempre me foi incompreensível porque nascemos para a alegria. A minha atitude em relação à religião é essa, não estou a falar de igrejas, estou a falar em relação a Deus e não acredito quando as pessoas dizem que são agnósticas ou ateias. Não estou a dizer que a pessoa não esteja a ser sincera, mas dentro dela e em qualquer ponto há algo... Uma vez perguntaram ao Hemingway se acreditava em Deus e a resposta foi às vezes, à noite.


António Lobo Antunes em entrevista ao DN de 30 de Setembro de 2007

6 de setembro de 2007

Diálogo Inter-Religioso

Um artigo deveras interessante sobre o tema pode ser lido no Filosofix II:

Quem é cristão? Reflexões para o diálogo inter-religioso.

E já agora dêem uma boa vista de olhos pelos demais artigos.

5 de setembro de 2007

O testemunho neotestamentario sobre a origem e a natureza da Igreja

Partamos do fato de que o anúncio de Jesus dizia respeito diretamente não à Igreja, mas ao reino de Deus (ou «reino dos céus»). Demonstra-o uma circunstância puramente estatística: o reino de Deus aparece no Novo Testamento cento e vinte e duas vezes: destas, noventa e nove nos evangelhos sinóticos, noventa das quais se acham em palavras de Jesus. Podemos, assim, compreender a afirmação de Loisy, que se tornou com o tempo popular: Jesus anunciou o reino, e veio a Igreja. Mas uma leitura histórica dos textos demonstra que essa contraposição entre reino e Igreja não é objetiva. Segundo a concepção judaica, de fato, a especificidade do reino de Deus consiste em reunir e purificar os homens para esse reino. «Justamente porque considerava próximo o fim, Jesus teve de querer reunir o povo de Deus do tempo da salvação». Na profecia pós-exílica, a vinda do reino é precedida pelo profeta Elias ou pelo «anjo» que permaneceu anônimo, o qual prepara o povo para esse reino. João Batista, justamente porque é o anunciador do Messias, reúne a comunidade do fim dos tempos e a purifica. Assim também a comunidade de Qumran, justamente em razão da sua fé escatológica, se reunira como comunidade da nova aliança. Por isso J. Jeremias conclui com esta formulação: «Isto deve ser fortemente realçado: toda a obra de Jesus visa apenas a recolher o povo escatológico de Deus».
Desse povo Jesus fala em muitas imagens, em particular nas parábolas de crescimento, nas quais o «logo» da escatologia aproximada, característica de João Batista e de Qumran, desemboca no agora da cristologia. O próprio Jesus é a obra de Deus, a sua vinda, a sua senhoria. «Reino de Deus» na boca de Jesus não significa alguma coisa ou algum lugar, mas o agir atual de Deus. Por isso não é errado traduzir a afirmação programática de Mc 1,15 «O reino de Deus chegou»: Deus chegou. Daqui surge mais uma vez a conexão com Jesus, com a sua pessoa: Ele próprio é a proximidade de Deus. Onde está Jesus, ali está o reino. A este respeito, a frase de Loisy deve ser portanto modificada: Foi prometido o reino, e veio Jesus. Só assim se compreende corretamente o paradoxo de promessa e cumprimento.
Mas Jesus nunca está só. Ele veio para reunir os que estavam dispersos (cfr. Jo 11,52; Mt 12,30). Por isso toda a sua obra consiste em reunir o povo novo. Já temos, assim, dois elementos essenciais para a futura noção de Igreja, ou seja: no novo povo de Deus, no sentido de Jesus, está implícita a dinâmica pela qual todos se tornam uma só coisa, aquele ir uns em direção aos outros indo na direção de Deus. E além disso o ponto de recolhimento interior do novo povo é Cristo; este, por outro lado, só se torna um povo através da chamada de Cristo e através da resposta à chamada, à pessoa de Cristo…
A outra observação já nos introduz no próximo tema: os discípulos pedem a Jesus uma oração comum para eles. «Em meio aos grupos religiosos do ambiente circunstante, uma ordem própria de oração constitui na realidade um sinal distintivo essencial da comunidade» Por isso o pedido de uma oração exprime a consciência por parte dos discípulos de se terem tornado uma nova comunidade voltada para Jesus. Aqui, eles são como a célula primigênia da Igreja, e ao mesmo tempo nos mostram que a Igreja é uma comunidade unificada essencialmente a partir da oração. A oração com Jesus nos dá a comum abertura a Deus.
Seguem-se automaticamente daqui outras duas passagens. Antes de tudo, devemos levar em conta o fato de que a comunidade dos discípulos de Jesus não é um grupo amorfo. Em meio a eles há o núcleo compacto dos Doze, ao lado do qual, segundo Lucas (10,1-20), se coloca também o círculo dos setenta ou setenta e dois discípulos. Deve-se ter em mente que só depois da ressurreição os Doze recebem o título de «apóstolos». Antes são chamados simplesmente «os Doze». Este número, que faz deles uma comunidade claramente circunscrita, é tão importante que, depois da traição de Judas, é novamente completado (At 1,15-26). Marcos descreve expressamente a vocação deles com as palavras: «e Jesus os constituiu como Doze» (3,14). A sua primeira tarefa é a de formarem juntos os Doze; a isto se somam em seguida duas funções: «que estivessem com ele e pudesse enviá-los a pregar» (Mc 3,14). O simbolismo dos Doze é portanto de importância decisiva: é o número dos filhos de Jacó, o número das tribos de Israel. Com a formação do grupo dos Doze, Jesus apresenta-se como o tronco de um novo Israel; à sua origem e fundamento são pré-escolhidos doze discípulos. Não podia ser expresso com maior clareza o nascimento de um povo que agora se forma não mais por descendência física, mas através do dom de «ser com» Jesus, recebido pelos Doze que por Ele são enviados a transmiti-lo. Aqui já é possível reconhecer também o tema da unidade e da multiplicidade, onde na indivisível comunidade dos Doze, que só enquanto tal realizam o seu simbolismo — a sua missão — domina certamente o ponto de vista do povo novo na sua unidade.
O grupo dos setenta ou setenta e dois, de que fala Lucas, integra esse simbolismo: setenta (setenta e dois) era, segundo a tradição judaica (Gn 10; Ex 1,5; Dt 32,8), o número dos povos do mundo. O fato de que o Antigo Testamento grego, nascido em Alexandria, tenha sido atribuído a setenta (ou setenta e dois) tradutores devia significar que com aquele texto em língua grega o livro sagrado de Israel se tornara a Bíblia de todos os povos, como de fato depois aconteceu, tendo os cristãos adotado aquela tradução. O número de setenta discípulos manifesta a pretensão de Jesus com relação à humanidade inteira, que como tal deve formar a fileira de seus discípulos; eles estão indicando que o novo Israel abarcará todos os povos da terra.
A oração comum que os discípulos receberam de Jesus nos leva a uma outra pista. Durante a sua vida terrena, Jesus participara com os Doze do culto do templo de Israel. O Pai Nosso era o primeiro início de uma comunidade especial de oração com e a partir de Jesus. Além disso, na noite, antes da paixão, Jesus dá outro passo nessa direção, quando transforma a Páscoa de Israel num culto totalmente novo, que logicamente devia levar para fora da comunidade do templo e com isso fundar definitivamente um povo da «nova aliança». As palavras de instituição da eucaristia, quer na tradição marciana, quer na paulina, têm sempre a ver com a aliança; elas remetem ao Sinai e à nova aliança prenunciada por Jeremias. Os sinóticos e o evangelho de João estabelecem, além disso, mesmo que de modos diversos, o nexo com o evento pascal, e enfim evocam também as palavras do Servo que sofre, em Isaías. Com a Páscoa e o rito da aliança sinaítica são recebidos os dois atos fundadores de Israel através dos quais ele se tornou e se torna sempre de novo um povo. O vínculo desse fundo cultual originário, sobre o qual se baseava e vivia Israel, com as palavras-chaves da tradição profética funde passado, presente e futuro na perspectiva de uma nova aliança. O sentido do todo é claro: «Como no passado o antigo Israel venerava no templo o seu próprio centro e a garantia da sua unidade e na celebração comunitária da Páscoa realizava de maneira viva tal unidade, assim agora este novo banquete deve ser o vínculo de unidade de um novo povo de Deus. Não é mais preciso um lugar central constituído pelo único templo exterior… O corpo de Cristo, que é o centro do banquete do Senhor, é o único novo templo que reúne numa unidade os cristãos bem mais realmente do que possa fazer um templo de pedras».
À mesma ordem de idéias pertence outra série de textos da tradição evangélica. Tanto Mateus e Marcos como também João transmitem (naturalmente em diferentes contextos) a expressão de Jesus, segundo a qual Ele reconstruirá em três dias o templo destruído e o substituirá por um melhor (Mc 14,58 e Mt 26,61; Mc 15,29 e Mt 27,40; Jo 2,19; cf. Mc 11,15-19 par.;Mt 12,6). Tanto nos sinóticos quanto em João é claro que o novo templo, "não feito por mãos de homem", é o corpo glorioso do próprio Jesus…». Isto significa: «Jesus anuncia o esboroamento do culto antigo e com ele do antigo povo e ordenação salvífica, e promete um novo culto mais elevado, em cujo centro estará o seu corpo glorioso».
Segue-se daí que a fundação da santíssima eucaristia na noite que precede a paixão não pode ser vista como uma ação qualquer, mais ou menos isolada. Ela é a estipulação de um pacto e, como tal, a concreta fundação do novo povo, que se torna tal através da sua relação de aliança com Deus. Poderíamos dizer também: em virtude do evento eucarístico, Jesus implica os discípulos na sua relação com Deus e portanto também na sua missão, que visa a «os muitos», ou seja, a humanidade de todos os lugares e de todos os tempos. Esses discípulos tornam-se «povo» através da comunhão com o corpo e sangue de Jesus, que é ao mesmo tempo comunhão com Deus. A idéia veterotestamentária da aliança, que Jesus acolhe na sua pregação, recebe um novo centro: a comunhão com o corpo de Cristo. Poderíamos dizer: o povo da nova aliança torna-se povo a partir do corpo e do sangue de Cristo, e é só a partir deste centro que ele é povo. Pode ser chamado «povo de Deus» porque, para a comunhão com Cristo se abre a relação com Deus, que o homem não é capaz de estabelecer por si só.

Trechos de "J. Ratzinger, La Chiesa, Edizioni Paoline 1991, pp.14-20", extraídos de: http://web.i2000net.it/ioculano/chiesa/chiesa3.htm
Traduzido em Bento XVI

4 de setembro de 2007

"A Natureza do Direito", Eric Voegelin

Uma indagação acerca da natureza do direito está repleta de dúvidas sobre a sua exequibilidade, pois os filósofos clássicos, Platão e Aristóteles, não tinham uma filosofia do direito. Os problemas que, na nossa moderna teoria jurídica são tratados sob esta epígrafe apareceram em Platão sob títulos tais como "justiça" ou "ordem verdadeira da polis", e em Aristóteles como parte da episteme politike, com as suas subdivisões em ética e política. Por isso, quem tenha alguma confiança na perspicácia e competência dos dois pensadores ficará preocupado, no princípio de uma tal indagação, com o pensamento de que o direito talvez não tenha uma natureza. Uma vez que a única razão para uma coisa não ter natureza é a sua falta de estatuto ontológico - o facto de não ser uma coisa concreta, reservada, num qualquer domínio do ser -, surge o problema desagradável de saber se o direito existe.

Prólogo de "A Natureza do Direito", Eric Voegelin, in "A Natureza do Direito e outros textos jurídicos", Lisboa, Vega, 1998

Anti-Clericalismo

Em primeiro lugar quero publicamente dar um abraço ao Tilleul pelo início da sua colaboração aqui.

Foi muito simpático da tua parte.

E é muito interessante começares por um assunto tão importante na sociedade, como absurdo no conceito, o ateísmo.

Concordo com a análise que fazes que muito do ateísmo (não todo) supostamente existente é mais um anti-clericalismo que outra coisa. Será até o mais frequente em Portugal.

Esse anti-clericalismo está fora do tempo: reage contra uma Igreja que não existe, e que me pergunto se alguma vez existiu.

Mas não ponho em causa a boa-fé destas pessoas: reagem contra uma imagem fantasiosa de uma caricatura de "igreja" formada por catequeses mal apreendidas e imagens caricaturais.

Daí o encontrares a mesma imagem de "igreja" nalguns sites tradicionalistas (não todos) e nos sites sedevacantistas.

A falta de catequese e a imagem caricatural da "igreja" são comuns a ambos os casos.

À mesa com o cardeal

Adora sopas e bebe limonada, no Natal ficará em Roma «para não ser um estorvo em outro lugar», tem como autor predileto Santo Agostinho. Retrato particular de um príncipe da Igreja.
Entrevista de Alessandra Borghese
Segunda-feira, 25 de Outubro [2004), jantei com o cardeal Joseph Ratzinger, o seu secretário dom Georg Gaenswein e a princesa Thurn und Taxis. Foram algumas horas com o prefeito do ex Santo Ofício para descobrir um homem afável, doce e sobretudo dotado de bom humor. Quem o descreve como gelado, reservado, inacessível e intelectual demais não o conheceu. 
Tudo começa às 19.30: em Roma faz calor, o cardeal acabou de dialogar com Ernesto Galli della Loggia sobre «História, religião e política» diante do Palazzo Colonna (as duas intervenções foram publicadas por extenso em Foglio de 27 de outubro). Alfredo, o motorista, está na direção da velha Mercedes azul com placa Scv (Stato della Città del Vaticano): o carro encosta no nosso ciclomotor e Alfredo nos faz sinal para segui-lo. 

Alguns slalons no caótico trânsito de Roma e entramos no Vaticano pela porta Sant'Anna. O motorista explica aos guardas suíços e depois aos vigias da Santa Sé que o ciclomotor faz parte do séquito do cardeal. Um, dois, três blocos e estamos na Domus Santa Marta. 
Lugar importante, este, a não perder de vista: justamente ali, no próximo conclave, os cardeais votantes (com menos de 80 anos) terão a sua residência. E será justamente o cardeal Ratzinger, decano do Sacro colégio, que guiará e supervisionará os trabalhos. «Antigamente ficavámos realmente isolados e trancados à chave, qualquer relação com o exterior era impensável», suspira Ratzinger, que não esconde a preocupação com que o uso de celulares possa de algum modo interferir nas votações. 

Eis-nos no jantar. Numa salinha, sobre a mesa posta, o antepasto já está servido: bresaola com pedaços de grapefruit vermelho. O cardeal abençoa a comida e depois se senta. Normalmente não gosta de comer muito à noite, quase nunca mais que uma sopa. Observando-o à mesa, «o Tomás de Aquino da atualidade», como o define alguém da imprensa internacional, o homem culto e de incrívele finura intelectual cujos livros são objeto de estudo e debate mesmo entre os leigos mais aguerridos, não tem um ar cansado mas antes divertido. Enche um copo com seu «vinho» favorito: limonada. «O meu ritmo de trabalho e a necessidade de estar sempre muito lúcido não me permitem sequer um copo de vinho. Acordo às 6 da manhã, até poucos anos atrás até antes. Depois da missa, a meditação e o breviário, o meu dia de trabalho não me permite um só instante de pausa: encontros, reuniões, conferências, escritos para rever, documentos para assinar».

Nesse momento Sua Eminência começa a fazer perguntas a Gloria Thurn und Taxis, quer saber dos filhos, do que estão fazendo e se vão passar o Natal na amada Ratisbona onde, entre outras coisas, reside também o irmão do cardeal. Thurn und Taxis responde que estarão na África e que não vê a hora de estar com o povo do lugar. Ratzinger olha para ela e exclama: «Achava que a senhora fosse à África para ver as girafas e os elefantes!». Todos estouramos numa gargalhada. É um Ratzinger tranqüilo, bem humorado, aberto aquele que janta conosco. Vendo-o tão disponível, pergunto-lhe o que fará no Natal. «Vou ficar em Roma» responde, «aqui é o lugar de um cardeal. Em qualquer outra cidade ou lugarejo eu seria um estorvo: há já os bispos e os párocos para as celebrações». Em certo sentido, o Santo Padre «acorrentou» perto de si o amigo fiel, o seu máximo defensor. Enquanto uma freira troca os pratos e serve uma sopa de verduras, seguida de peitos de frango com salada campestre, insisto nas perguntas.

Eminência, como o senhor reza, tem um santo favorito? «Rezo diretamente a Deus, é com Ele o meu colóquio. Diria que o santo a que me sinto mais ligado é Agostinho». Não São José?, intervém surpresa a princesa bávara. «Sem dúvida» responde prontamente Ratzinger «como esquecer o companheiro de Maria, o pai adotivo de Jesus! Mas, a respeito de São José, gostaria de lhes contar uma historinha. Alemanha, nos anos do nazismo. Um certo momento corre o boato de que num instituto para crianças deficientes os próprios meninos foram habituados a cuspir na fotografia de Hitler. A notícia é obviamente falsa, posta em circulação para eliminar as crianças doentes. Mas as autoridades querem examinar o assunto e os nazistas decidem realizar um interrogatório na escola para verificar os fatos. As freiras ficam apavoradas. O protetor do Instituto é São José e um grande quadro que o representava está bem à vista no refeitório. Um dos guardas se aproxima dos meninos. Mostra-lhes uma fotografia do Führer e lhes pergunta: quem é ele. E as crianças, sem sombra de dúvida, respondem: "São José"». 

Enquanto chega ao prato do cardeal um abacaxi cortado em fatias, a nós três é servido o sorvete. Já são 21.30, ultrapassamos o tempo máximo. Sua Eminência diz sentado a oração de agradecimento, depois se levanta e pede a dom Georg que o acompanhe até a casa. Antes de se despedir de nós, certifica-se de que sabemos como sair do Vaticano, já que a porta Perugino está fechada. «Vocês têm que passar a antiga igreja de Santo Stefano degli Abissini, deixare o governatorato à esquerda, virar no pátio da Sentinella, passar o pátio do Belvedere e sair pela porta Sant'Anna». 
Sua Eminência vai caminhando a pé pela rua que ladeia a grande Cúpula de San Pietro. Do nosso ciclomotor, mais um adeus: «Jesus Cristo seja louvado!». No silêncio profundo ecoa a resposta do cardeal e de dom Georg: «Seja sempre louvado!».
(C) Panorama, 8/11/2004
http://www.panorama.it/italia/vaticano/articolo/ix1-A020001027699
traduzido em Bento XVI

1 de setembro de 2007

Fundamentalismo Ateu

Confesso que gosto de ler e ouvir os que pensam diferente de mim. Não é nenhuma tendência masoquista mas sempre acreditei que para se dialogar é necessário antes demais conhecer a verdade. Assim tenho um, chamemos-lhe "carinho" especial com meia dúzia de sites ateístas e alguns sites tradicionalistas católicos.

Por incrível que possa parecer, as opiniões, que à partida deveriam ser diferentes, são muito idênticas em particular no que diz respeito à ideia que fazem de Deus e da Igreja. No entanto e para minha grande desilusão, demasiadas vezes, em vez existir uma defesa das suas posições, o que se passa são puros ataques de ódio às posições dos outros.


No meu entendimento, um site ateísta deveria apresentar uma visão do mundo sem Deus ou, num mínimo aceitável para uma saudável convivência com o resto do mundo que o rodeia, uma recusa baseada numa refutação lógica das opiniões crentes. Exemplo disso tipo de posição é o blog De Rerum Natura, que em geral é um local onde o saber é cultivado e partilhado nas suas mais diversas vertentes com a consciência que os seus autores são assumidamente ateus. No entanto este site é uma excepção e o mais comum de encontrar na blogosfera são sites onde o gozo e o menosprezo são letras de músicas de uma nota só.

Por norma os sites ateístas em português são anti-clericais, arriscando-me mesmo a afirmar que é mais fácil encontrar um lobo ibérico que um verdadeiro ateu português.

A conclusão a que se pode chegar é que não existe ateísmo em Portugal mas simplesmente anticlericalismo. Porquê? Tão simplesmente porque um ateu é um crente na não-existência de Deus e nunca poderá ser ateu por oposição aos que acreditam. Um ateu tem uma fé não divina, num sentido de não existência de um criador. Mas o que acontece na realidade em sites como o Diário Ateista, é que o ateu tem simplesmente ódio e desprezo pelo crente.

Muitos sites, como Random Precision ou Devaneios Desintéricos, para além de serem anti-clericais, defendem um elitismo bacoco e quase xenófobo dando uso a um tipo propaganda que quer fazer passar o ateu como o ser esclarecido, científico, lógico, quase uma raça à parte e mais evoluída por oposição ao homo religiosus que é por sua vez um ser baixo na escala de evolução que não se consegue livrar dos mitos dos antepassados e das suas mentiras e por isso só pode ser alvo de chacota. A imagem de Deus, muitas vezes apresentada nestes blogs, é de um Deus mau, tirano e ainda para mais criado para oprimir e explorar as classes mais pobres e menos instruídas.

Claro que um dos alvos favoritos é a Igreja Católica, a que muitos destes blogs tratam carinhosamente por "ICAR".

Mas agora vem o mais incrível. É que as críticas apresentadas, quando não meros insultos, visam uma Igreja que cada vez menos existe e a existir também eu só contra ela.

Numa ira destruidora que nem o verde Hulk, a "ICAR" é pintada como uma hierarquia sexualmente reprimida, pedófila, que propaga uma ideologia criada pelo homem para oprimir o outro em especial os de outra raça, credo, género ou orientação sexual; que se baseia num livro que está cheio de contradições e com um conjunto de fieis que merecem apenas pena por incapacidade de se libertarem e pensarem por si próprios.

É óbvio que para estes dogmáticos ateus, qualquer tentativa de evolução é vista como uma luta pela sobrevivência e que apesar do caminho percorrido com o Concílio Vaticano II, o alvo católico continua parado no pós Trento.

É pena que assim seja, porque para a construção de uma sociedade melhor é necessário o diálogo entre todas as forças sociais. É claro que existem ateus esclarecidos, que não acreditando, aceitam que outros possam ter uma fé, seja ela qual for e não alguém que à força do mau gosto e do insulto se quer fazer passar por inteligente só porque os outros são, na sua opinião, inferiores a ele.

Num estado laico e democrático e que se quer plural, o respeito pelas minorias é um dever mas será que não se deve respeitar também a fé de cada um?

Enquanto crente e em especial sendo cristão, que se deve e pode fazer?

Em comunhão

29 de agosto de 2007

Ratzinger e a Liturgia


O segundo grande acontecimento no início de meus anos de Ratisbona foi a publicação do missal de Paulo VI, com a interdição quase completa do missal anterior, depois de uma fase de transição de cerca de seis meses. O fato de que, depois de um período de experiências que não raro haviam desfigurado profundamente a liturgia, se voltasse a ter um texto litúrgico obrigatório, devia ser saudado como algo de certamente positivo. Mas fiquei pasmo com a interdição do missal antigo, uma vez que nunca ocorrera algo parecido em toda a história da liturgia. Deu-se a impressão de que isso fosse completamente normal. O missal anterior fora realizado por Pio V em 1570, dando seqüência ao Concílio de Trento; era, pois, normal que, depois de quatrocentos anos e um novo Concílio, um novo papa publicasse um novo missal. Mas a verdade histórica é outra. Pio V limitara-se a mandar reelaborar o missal romano então em uso, como no decurso vivo da história sempre ocorrera ao longo de todos os séculos. Não diferentemente dele, também muitos dos seus sucessores haviam novamente reelaborado esse missal, sem nunca contrapor um missal a outro. Sempre se tratou de um processo contínuo de crescimento e de purificação, em que, porém, a continuidade jamais era destruída. Não existe um missal de Pio V que tenha sido criado por ele. Existe só a reelaboração por ele ordenada, como fase de um longo processo de crescimento histórico. O novo, depois do Concílio de Trento, tinha outra natureza: a irrupção da reforma protestante ocorrera sobretudo sob a forma de "reformas" litúrgicas. Não havia simplesmente uma Igreja católica e uma Igreja protestante uma ao lado da outra; a divisão da Igreja deu-se quase imperceptivelmente e teve a sua manifestação mais visível e historicamente mais incisiva na mudança da liturgia, que, por sua vez, foi muito diversificada no plano local, tanto que as fronteiras entre o que ainda era católico e o que não mais o era, muitas vezes eram muito difíceis de definir. Nessa situação de confusão, possibilitada pela falta de uma norma litúrgica unitária e pelo pluralismo litúrgico herdado da Idade Média, o Papa decidiu que o Missale Romanum, o texto litúrgico da cidade de Roma, uma vez que seguramente católico, devia ser introduzido em todos os lugares onde não se pudesse reivindicar uma liturgia que datasse de pelo menos duzentos anos antes. Onde isto ocorria, podia-se conservar a liturgia precedente, dado que o seu caráter católico podia ser considerado certo. Não se pode de fato, pois, falar de um interdito em relação aos missais anteriores e até aquele momento regularmente aprovados. Agora, ao contrário, a promulgação da interdição do missal que se desenvolvera ao longo dos séculos, desde o tempo dos sacramentais da antiga Igreja, implicou uma ruptura na história da liturgia, cujas conseqüências só podiam ser trágicas.
Como já ocorrera muitas vezes antes, era totalmente razoável e estava plenamente em linha com as disposições do Concílio que se chegasse a uma revisão do missal, sobretudo em consideração da introdução das línguas nacionais. Mas naquele momento ocorreu algo mais: fez-se em pedaços o edifício antigo e se costruiu um outro, ainda que com o material de que era feito o edifício antigo e utilizando também os projetos anteriores. Não há nenhuma dúvida de que esse novo missal continha em muitas das suas partes autênticas melhorias e um real enriquecimento, mas o fato de que ele tenha sido apresentado como um edifício novo, contraposto ao que se formara ao longo da história, que se proibisse este último e se fizesse de certo modo a liturgia aparecer não mais como um processo vital, mas como um produto de erudição especializada e de competência jurídica, trouxe-nos danos extremamente graves. Foi assim, de fato, que se desenvolveu a impressão de que a liturgia seja "feita", que não seja algo que existe antes de nós, algo de " dado", mas que dependa das nossas decisões. Segue-se daí, por conseguinte, que não se reconheça esta capacidade decisional só aos especialistas ou a uma autoridade central, mas, em definitivo, cada " comunidade" queira fazer sua própria liturgia. Mas quando a liturgia se torna algo que cada um faz por si mesmo, ela não nos dá mais aquela que é a sua verdadeira qualidade: o encontro com o mistério, que não é um produto nosso, mas a nossa origem e a fonte da nossa vida. Para a vida da Igreja, é dramaticamente urgente uma renovação da consciência litúrgica, uma reconciliação litúrgica, que volte a reconhecer a unidade da história da liturgia e compreenda o Vaticano II não como ruptura, mas como momento evolutivo. Estou convencido de que a crise eclesial em que hoje nos achamos depende em grande parte do esboroamento da liturgia, que por vezes é mesmo concebida "etsi Deus não daretur": como se nela não importasse mais se Deus existe e se nos fala e nos escuta. Mas se na liturgia não aparece mais a comunhão da fé, a unidade universal da Igreja e da sua história, o mistério de Cristo vivo, onde é que a Igreja aparece ainda na sua substância espiritual?
Então a comunidade celebra apenas a si mesma, sem que isso valha a pena. E, dado que a comunidade em si mesma não tem subsistência, mas, enquanto unidade, tem origem para a fé do Senhor, passa a ser inevitável nestas condições que se chegue à dissolução em partidos de todo tipo, à contraposição partidária numa Igreja que se dilacera a si mesma. Por isso precisamos de um novo movimento litúrgico, que ressuscite a verdadeira herança do concílio Vaticano II.

Extraído do livro "La mia vita: ricordi, 1927-1977", Cinisello Balsamo: San Paolo, 1997,110-113.
Traduzido no site Bento XVI

Encontro em Lisboa

Foi o 17º encontro da Rede Europeia Igreja em Liberdade. Cristãos oriundos de vários países europeus, a quem a experiência mostrou que o mundo actual se constrói no ultrapassar das fronteiras: fronteiras culturais, políticas, religiosas, geográficas, históricas… Senti admiração por estes cristãos, moldados pela abertura e pela partilha, que têm a humanidade por horizonte.
Sinal de abertura, depressa se pede que seja constituído um atelier de trabalho sobre a África. Os laços entre a Europa e a África são muitos. Existem situações intoleráveis, como as do Darfur. São feitas propostas de informação e pressão ao nível das instituições europeias.
Em África há acções corajosas, realizadas por cristãos, por religiosos/as, há bispos que se empenham a favor da justiça. Bem como documentos, alguns dos quais são proféticos. É necessário divulgar as informações.
A minha intervenção, feita em conjunto com uma portuguesa, era subordinada ao tema “O povo de Deus num mundo em movimento”.
Tive esta oportunidade de ter diante de mim cristãos em liberdade, que encontram no seu caminho gente de todos os horizontes. Fazem a experiência decisiva que Jesus conheceu. O homem de Nazaré encontrou pessoas que, no quadro da Lei, nunca teriam oportunidade de encontrar Deus.
No convento dos Dominicanos, em Lisboa, a Eucaristia concluiu o encontro. Uma eucaristia de Pentecostes, com ritmos africanos, na qual cada um e cada uma pôde tomar a palavra na sua própria língua.
Partenia

24 de agosto de 2007

Benção para os divorciados que voltam a casar


Após a cerimónia na conservatória todos, família e amigos, se reúnem em casa dos recém-casados. Ficamos de pé, um pouco apertados, na grande sala de estar.
Os recém-casados, rodeados pelos filhos, têm esta bênção em grande apreço. Para eles é um acontecimento carregado de sentido. É por isso que tomam a palavra, não só para recordarem a sua situação, mas, sobretudo, para dizerem o que tencionam fazer desta nova etapa da sua vida.
As suas palavras têm um toque de liberdade. É verdade que estão em sua casa e, portanto, mais à vontade do que se estivessem numa igreja. Mas, acima de tudo, parece-me que, acima de tudo, as suas palavras estão marcadas pelo peso da sua experiência humana. Falam com humildade e conhecimento de causa.
Estamos todos presentes para que o seu casamento seja bem-sucedido.

É distribuída uma folha, pela qual nos guiamos para cantarmos, com todo o coração: "Encontrar na minha vida a tua presença".
Os noivos apresentam-me as alianças, que eu abençoo e eles dão um ao outro:
“Recebe esta aliança, como símbolo do nosso amor e da nossa fidelidade."
A assistência aplaude.
A breve celebração é concluída com palavras de paz:
“Que a paz esteja nesta casa. Que reine sempre entre vós."
A festa continua…
Jacques Gaillot, in Partenia

Martin Niemoller

Als die Nazis die Kommunisten holten, habe ich geschwiegen: ich war ja kein Kommunist.
Als sie die Sozialdemokraten einsperrten, habe ich geschwiegen: ich war ja kein Sozialdemokrat.
Als sie die Katholiken holten, habe ich nicht protestiert: ich war ja kein Katholik.
Als sie mich holten, gab es keinen mehr, der protestieren konnte.
Quando os nazis vieram pelos comunistas, eu fiquei calado: não era comunista.
Quando eles encarceraram os social democratas, eu fiquei calado: não era social democrata.
Quando eles vieram pelos católicos, eu não protestei: não era católico.
Quando vieram por mim, já não havia ninguém que pudesse protestar.
in http://www.mnge.de/v2_new/index.php?m=2002

Do Francisco (de Assis) para o António (de Lisboa)


Ao irmão António, meu bispo, o irmão Francisco
envia saudações.
Tenho gosto em que ensines aos irmãos a sagrada teologia, desde que, com o estudo, não se extinga neles o espírito da santa oração e devoção como está escrito na Regra.

Voegelin, visto por José Adelino Maltez (2)

As teses de Voegelin sobre o Direito inserem-se, sem dúvida, naquele grandioso movimento de regresso ao direito natural e à teoria da natureza da coisas que, depois do holocausto nazi e do terrorismo estalinista, nos obrigou à reperegrinação em torno da dignidade humana.
José Adelino Maltez, in Voegelin e a procura do direito natural, prefácio da Edição Portuguesa de “A natureza do Direito” de Eric Voegelin

Voegelin, visto por José Adelino Maltez

"…ele [Eric Voegelin] constitui, sem dúvida, uma das referências fundamentais do universo contemporâneo das ideias. Principalmente por ser um insigne representante da íntima ligação entre o pensamento europeu e o pensamento norte-americano do pós-guerra, à semelhança de outros gigantes, como Leo Strauss, Carl Friedrich e Hannah Arendt, que a euforia genocida das perseguições hitlerianas obrigou a uma travessia do Atlântico. Uma geração que manteve, nesse Novo Mundo, a arca dos segredos teóricos da liberdade europeia e ocidental, daquilo que o mesmo Voegelin considerou como a ciência clássica e cristã do homem, onde o fundo ateniense, platónico e aristotélico, reanimado pelo estoicismo romano e pelo vigor espiritual judaico-cristão, produziu aquele humanismo activista que ousou sempre nascer de novo, refazendo as sucessivas renascenças e promovendo aquelas regenerações que sempre visaram regressar para seguir em frente."
José Adelino Maltez, in Voegelin e a procura do direito natural, prefácio da Edição Portuguesa de “A natureza do Direito” de Eric Voegelin

Apologia de Sócrates


O que vós, cidadãos atenienses, haveis sentido, com o manejo dos meus acusadores, não sei; certo é que eu, devido a eles, quase me esquecia de mim mesmo, tão persuasivamente falavam.
Contudo, não disseram, eu o afirmo, nada de verdadeiro. Mas, entre as muitas mentiras que divulgaram, uma, acima de todas, eu admiro: aquela pela qual disseram que deveis ter cuidado para não serdes enganados por mim, como homem hábil no falar.
Mas, então, não se envergonham disto, de que logo seriam desmentidos por mim, com factos, quando eu me apresentasse diante de vós, de nenhum modo hábil orador? Essa me parece a sua maior imprudência, se, todavia, não denominam "hábil no falar" aquele que diz a verdade.
Porque, se dizem exactamente isso, poderei confessar que sou orador, não porém à sua maneira.
Assim, pois, como acabei de dizer, pouco ou absolutamente nada disseram de verdade; mas, ao contrário, eu vo-la direi em toda a sua plenitude. Contudo, por Zeus, não ouvireis, por certo, cidadãos atenienses, discursos enfeitados de locuções e de palavras, ou adornados como os
deles, mas coisas ditas simplesmente com as palavras que me vieram à boca; pois estou certo de que é justo o que eu digo, e nenhum de vós espera outra coisa. Em verdade, nem conviria que eu, nesta idade, me apresentasse diante de vós, ó cidadãos, como um jovenzinho que estuda os seus discursos. E todavia, cidadãos atenienses, isso vos peço, vos suplico: se sentirdes que me defendo com os mesmos discursos com os quais costumo falas nas feiras, perto dos bancos, onde muitos de vós tendes ouvido, e em outros lugares, não vos espanteis por isso, nem provoqueis clamor. Porquanto, há o seguinte: é a primeira vez que me apresento diante de um tribunal, na idade de mais de setenta anos: por isso, sou quase estranho ao modo de falar aqui. Se eu fosse realmente um forasteiro, sem dúvida, perdoaríeis, se eu falasse na língua e maneira pelas quais tivesse sido educado; assim também agora vos peço uma coisa que me parece justa: permiti-me, em primeiro lugar, o meu modo de falar - e poderá ser pior ou mesmo melhor - depois, considerai o seguinte, e só prestai atenção a isso: se o que digo é justo ou não: essa, de facto, é a virtude do juiz, do orador - dizer a verdade.

23 de agosto de 2007

5 de julho de 2007

Martinho Lutero


Julgas-te muito conhecedor e deixas que os outros te considerem como tal, deleitas-te com os teus próprios livrinhos, teorias, ou escritos como se tivesses feito grande coisa ou pregado excelentemente. Também te agrada muito que os outros te façam lisonjas em público? Talvez seja esse o teu maior desejo, de contrário ficarias contristado, ou declinarias o elogio. Se é esta a tua maneira de proceder, mais vale deitares as mãos à cabeça. E com proveito! Encontrarás um lindo par de orelhas de burro, grandes, compridas! Aproveita a oportunidade: enfeita-as com guizos dourados, de forma a que toda a gente te possa ouvir onde quer que vás. Todos apontarão para ti dizendo: "Olhai, olhai, ali vai o lindo animal inteligente que escreve livros importantes e que faz lindas pregações".

21 de março de 2007

A ressurreição de Lázaro

O cristianismo e a criação


CRISTIANISMO, JUDAÍSMO E ISLAMISMO

'O cristianismo e a criação'

Pe. Doutor Joaquim Carreira das Neves

Não vamos tratar, aqui e agora, os problemas científicos sobre a criação, até porque a Bíblia nasceu, cresceu e foi-nos apresentada em tempos que nada tinham a ver com os da ciência. Damos como adquirido a ciência do evolucionismo, tão discutida a partir de Darwin. Muitos problemas continuam em aberto e, perante tais desafios, em meu entender, a única atitude correcta é estarmos abertos ao que é verdadeira ciência. É impressionante sabermos que ainda hoje há milhões de pessoas que, por causa da sua fé e da Bíblia, continuam agarradas à teoria criacionista. A verdadeira ciência nunca faz mal à fé nem à Bíblia: são complementares e não contraditórias.
A teologia bíblica da criação afirma a alteridade da natureza ou do mundo em relação a Deus. A natureza e todas as suas criaturas não são Deus, ao contrário de alguma filosofia grega, que defende a unidade do ser, da filosofia e teologia gnóstica e do movimento religioso moderno NEW AGE.
O livro do Génesis abre o pórtico da sua catedral com duas narrativas bem distintas sobre a criação. A primeira vem no Gn 1, 1-2, 4a e a segunda em Gn 2, 4b - 3, 1-24. Ao contrário dos mitos da Assíria e da Babilónia, em que a criação do mundo e dos humanos nascem do "caos" e vivem na sua dependência e maldade, pois são frutos do deus Marduk, que se serve do cadáver do monstro Tiamat, que ele matou, e do seu sangue, a criação é fruto da Palavra de Deus. Deus é o Totalmente Outro, o Santo, e as suas criaturas vivem nesta alteridade de amor. Só quem acredita desta maneira pode rezar o PAI NOSSO. Entre todas as criaturas, nas duas narrativas, sobressai a criação do homem e da mulher, que, pela sua liberdade e alteridade, pode dizer SIM ou NÃO a Deus.
A primeira narrativa abre e fecha com uma "inclusão bíblica": "No princípio criou Deus os céus e a terra" (1, 1). "Esta é a história dos céus e da terra, quando foram criados" (2, 4a). A narrativa é uma liturgia religiosa, que tem por fim apresentar os três tempos fundamentais da criação: o da natureza exógena (o mundo com os céus de estrelas e planetas, a terra com os seus animais e plantas), o da criação do homem e mulher, à imagem e semelhança de Deus (1, 27) e o da criação do sábado. A narrativa é salpicada com o refrão jussivo do verbo haver: "E Deus disse: Haja...", e com a visão retrospectiva do mesmo Deus sobre a "bondade" da criação: "E Deus viu que era bom...". Depois de ter criado o homem e a mulher, Deus entrega a mesma criação e todo o seu mundo ao mesmo homem-mulher. A partir daqui, eles são com-criadores de Deus. Têm a criança nas mãos para a fazerem crescer e ser feliz: "Sede fecundos e multiplicai-vos e enchei a terra e submetei-a." (1, 18). Será que o homem moderno, cheio de interesses consumistas, entende esta mensagem?
A criação do sábado, com toda a solenidade que Deus lhe confere com os verbos "abençoar" e "santificar", apenas nos diz que o poema tem em vista a liturgia sabática porque Deus , santo, eterno e sem criação, deve ser amado e respeitado. O simples facto do poema usar o nome ELOHIM para dizer Deus, e não YHWH, indicia o tempo tardio da sua composição e a sua origem sacerdotal, do tempo do exílio ou pós-exílio, que eram de dificuldade, pobreza e incerteza. E é precisamente no meio de todas estas dificuldades que o autor bíblico nos apresenta a bondade da criação e a responsabilidade do homem-mulher sobre a mesma.
A segunda narrativa (2, 4b-3, 1-24) é muito diferente da primeira porque, agora, o nome de Deus é YHWH-ELOHIM, e tem alguns contactos com os mitos mesopotâmicos, sobretudo com o Enuma Elish e Atra-hasis. Na Bíblia, o homem é modelado do pó da terra, mas nos mitos supracitados, a argila é amassada juntamente com o sangue e com os restos dos principais deuses maus (Kingu e Wê-ila), aliados de Tiamat. Os deuses, nos seus ciúmes, guerreiam-se e matam-se e é com o sangue dos mortos que criam a humanidade. Os humanos não são mais do que uns títeres de maldade nas mãos dos deuses. Mas na Bíblia, o homem é fruto da terra e do "sopro" de Deus. É como que um "beijo" de Deus. O homem é colocado por Deus num éden (jardim ou várzea cheia de água, árvores e frutos), com a permissão de comer de todas as suas maravilhas, menos da árvore do "conhecimento do bem e do mal".
As imagens do "éden", "árvore do conhecimento do bem e do mal", "árvore da vida", "costela" de Adão, "cobra",etc., devem ser entendidas como imagens, símbolos, e nada mais. O que importa é o seu significado. Deus dá ao homem um "auxílio", que é a mulher, porque o homem, entre os animais, que lhe pertencem pelo facto de os ter nomeado, vivia na maior das solidões. Nenhum animal era semelhante a ele. O "auxílio" (ézer, no masc.) é a mulher: "osso dos meus ossos, / carne da minha carne. / Será chamada 'ishsha (mulher) porque foi tirada de 'ish (homem)". Homem e mulher perfazem uma unidade indissolúvel. Foram postos no "eden" para adorarem Deus, mas a "cobra", que é o símbolo dos deuses da fertilidade, atrai para o seu mundo a mulher e, com ela, o homem. Não se trata de explicar a origem do mal, porque não há mal sem liberdade, mas de mostrar o poder atractivo e idolátrico de poder dizer NÃO a Deus, para dizer SIM aos ídolos. E quando o homem e a mulher descobrem o seu pecado, vêem que estão nus, têm medo de Deus e escondem-se dele. Deus retira o homem e a mulher do "éden" para não continuarem a endeusar-se, e coloca-os na realidade concreta da vida humana: o homem trabalha a terra com o suor do seu rosto e a mulher dará à luz com sofrimento.
Ao fim e ao cabo, a narrativa é uma etiologia ou narrativa justificativa da história de Israel, antes do povo possuir a Terra Prometida, durante a Terra Prometida, antes do exílio e durante o exílio. O homem-mulher devia adorar o verdadeiro Deus no "éden" da Terra Prometida, mas não o fez. Quis endeusar-se, seguiu o mundo apetecível da cobra, isto é, do politeísmo
dos Baales e demais deuses e deusas da fertilidade. Deus expulsa-os para o exílio, mas não os abandona porque a descendência do homem-mulher há-de vencer o sortilégio idolátrico da cobra.
A narrativa apresenta as grande interrogações humanas, de ontem e hoje: Como compreender o mal? A sua atracção? Qual o porquê da dureza da vida e das dores da mulher para dar à luz? Como compreender o exílio e a vida errante de eterna busca do homem? Como compreender a morte?
Saindo das narrativas do Génesis, e para melhor compreendermos a criação, temos que ler com atenção o Deutero Isaías, especialmente Is 40, 22. 26; 44, 6; 45, 8. 12. 48; 48, 13; 51, 12-16; 54, 5. As afirmações sobre YHWH como único criador, vêm sempre misturadas com a história da salvação no exílio e a partir do exílio. Nunca são afirmações de filosofia metafísica ou das ciências da natureza. O mesmo se diga em relação à "nova criação" de Jesus e do Espírito que nos deixou: Jo 1, 1-18; Mc 1, 1; 1, 12-13; Hb 9, 1-14; Ap 21-22; Rm 8, 18-22; Jo 3, 3-6; Ac 2,1-4.
Pe. Joaquim Carreira das Neves, OFM
in http://www.franciscanos.com.pt/

20 de março de 2007






BAKUNIN

§ 1. Reacção e Revolução


Mikhail Bakunin (Pryamukhino, Rússia, 1814 – Bern 1876) foi um revolucionário cujas teorias contribuíram para o desenvolvimento do conceito de anarquismo, utilizando conceitos e linguagem retirados do léxico cristão. Podemos considerá-lo em certa medida como herdeiro do pensamento milenarista.

Bakunin considera que a “democracia é uma religião” e que os cidadãos se terão de tornar religiosos e que terão de aplicar esses mesmos princípios na vida quotidiana.

É evidente que estas ideias de Bakunin sobre a existência revolucionária democrática trazem as marcas do passado cristão. Conhecemos a escatologia do "povo de Deus." "a reversão total do estado do mundo" vem das novas “tábuas da lei” no Antigo Testamento; a "revelação, viva e vivificante " que traz "um céu novo e uma terra nova" é um anúncio messiânico; a distinção entre agitar ideias e realizá-las na "vida concreta" reflecte a metanóia cristã; "a vida original, nova" é a renovatio Evangelica. Toda a atmosfera de uma nova revelação iminente lembra as expectativas dos sectários ingleses do séc. XVII sobre o "Deus que virá” estabelecer o reino na terra.
Além desta estrutura formal da escatologia cristã, há uma outra continuidade com o cristianismo. A "liberdade do espírito" evocada é uma realização final do espírito cristão. Bakunin vê a luta pela liberdade como inerente à cristandade católica primitiva. O princípio da liberdade é "a fonte de todas as heresias". Em geral, a libertação das cadeias que oprimem os espíritos livres é o significado da história. Da liberdade nasceu a heresia vitoriosa do Protestantismo, inerente ao Catolicismo primitivo até se tornar independente. O presente atingiu uma nova época crítica, um futuro além do Catolicismo e do Protestantismo.

Sendo o Catolicismo uma “glória ultrapassada” e o Protestantismo “uma anarquia de seitas” vem Bakunin, (como um novo S. João Baptista – na expressão de Voegelin) propor criar o terceiro reino da liberdade: “Sabeis que, de acordo com o seu destino final, a humanidade só encontrará paz e serenidade num princípio universal prático que unifique poderosamente a miríade de manifestações da vida espiritual” (in “A reacção na Alemanha”)

Este princípio universal prático é uma religião sem Deus: é criada a partir do homem e a salvação vem do espírito do homem. Mais concretamente do espírito de Bakunin, ao mesmo tempo profeta e “dux”, autor dos escritos (sagrados?) que conduzem o seu povo (as massas) para o terceiro reino da liberdade.

Religião sem Deus que porém se obriga a uma das máximas do Cristianismo: "Só nós, que somos apelidados de inimigos da religião cristã, podemos e devemos praticar o amor concreto mesmo na luta mais calorosa, o mandamento mais elevado de Cristo e a essência da verdadeira Cristandade." (in “A reacção na Alemanha”)

Em resumo, identificamos em Bakunin: (1) a ausência de uma ideia positiva da ordem, (2) a identificação da liberdade com "a paixão alegre da destruição" (3) a descoberta das "massas" como agente histórico de destruição.
Pessoalmente, considero que Bakunin se via a si próprio como um novo Moisés: Ele é aquele que vai levar o seu povo – as massas – para a Terra Prometida – o terceiro reino depois do Cristianismo e do Protestantismo.

Deus sabe onde me conduzirá. Eu sinto somente que nunca abdicarei dos meus passos e que nunca serei desleal às minhas convicções. Nisto reside toda a minha força e dignidade; Esta é a minha Confissão.” (Carta a Annenkov, Bruxelas, 28 de Dezembro de 1847).

Tal como Moisés não irá entrar na Terra Prometida. O revolucionário (ou profeta ou dux) descobre o caminho – a senda da destruição:
A destruição é o trabalho de uma geração de sacrifício; os revolucionários só podem destruir; a edificação "de um mundo novo e glorioso em que todas as dissonâncias actuais serão dissolvidas na unidade harmoniosa" fica para os que virão depois.

§2.A Confissão de Bakunin

Em 1851, Bakunin encontra-se preso na fortaleza de Pedro e Paulo a aguardar a deportação para a Sibéria, quando foi convidado pelo Czar a escrever uma Confissão dos seus pecados.

Obra complexa, a Confissão denota contradições nela mesma, e contradições com cartas secretas que enviou da prisão: os sentimentos de Bakunin são complexos; a carta secreta mostrava o rebelde, a Confissão é um misto de sinceridade e arrependimento.

Nota-se ali uma certa admiração pelo Czar: No artigo Reacção em Alemanha, de 1842, Bakunin distinguiu entre dois tipos de reaccionários; os consistentes e os comprometidos, ou mediadores. Despreza os segundos mas admira os primeiros.

Obviamente considera o Czar um reaccionário consistente. Aliás escreve nas Confissões: "Apesar das minhas convicções democráticas, adorei-vos profundamente nos últimos anos, contra minha vontade. Não só eu mas muitos outros, Polacos e Europeus em geral, compreenderam como sois o único, entre as cabeças coroadas, que preservou a fé na vocação imperial."

Bakunin nunca se arrependeu da sua existência revolucionária; arrependeu-se da futilidade dos seus esforços.

Esta desilusão tem muito a ver com o crescimento de grupos e seitas secretas comunistas na década de 40 do séc XVIII: para ele o comunismo era um sintoma de deterioração social, mas não o caminho de salvação que preconizava.

Atribuía ao crescimento do comunismo um instinto de revolta das massas contra a sociedade do seu tempo.

Bakunin foi forçado à existência revolucionária para ter um campo adequado de acção. A revolução no Ocidente seria o sinal para a revolução russa onde poderia desempenhar um papel activo. A intelligentsia russa do séc. XIX cresceu como uma classe isolada porque a ordem social e política (elogiar o governo chegou a ser considerado uma insolência subversiva) não deixava espaço para a acção construtiva de homens com inteligência, temperamento, instrução e vontade moral de reformar. É um lugar comum afirmar que um governo está em perigo quando os intelectuais estão na oposição. Mas os intelectuais não entram para a oposição por sua própria escolha mas sim porque nada mais vêem de digno para fazer. Uma ordem social alcança a fase crítica quando os homens de integridade intelectual e moral têm que se rebaixar para participar na vida pública. O insulto mais grave à personalidade humana é a negação da oportunidade que as qualidades se transformem em força activa na sociedade. Quando a corrupção afasta os membros mais valiosos da sociedade, a consequência será, conforme os tipos de personalidade, a passagem à contemplação ou a resistência activa mediante a destruição e criminalidade revolucionárias.

Bakunin move-se por uma fé voluntarista: "Só tenho um aliado: Fé! Digo a mim mesmo que a fé move montanhas, supera obstáculos, derrota o invencível e possibilita o impossível; a fé é metade da vitória e metade do sucesso; completada pela vontade poderosa cria as circunstâncias, amadurece os homens, junta-os e une-os.... Numa palavra: eu quero acreditar, e eu quero que os outros acreditem."

Trata-se, talvez, da mais perfeita descrição da mágica do mal, ou de como criar a realidade a partir de nada. A fé voluntarista opõe-se à vontade crente, do cristão. Esta "fé voluntarista" manifesta-se em Bakunin na invenção prodigiosa de sociedades revolucionárias imaginárias mas com resultados tangíveis. A fé e a imaginação entram no curso da história, criam as circunstâncias e produzem efeitos incríveis. É a primeira aparição da magia negra que regressará com a “magia radical” de Nietzsche", no persistência com que Lenine agarra o kairos e no poder e “Vitória de Fé” de Hitler.
Bakunin defende um imperialismo pan eslavista: começando por uma revolução russa pretende a grande libertação dos Eslavos (todos os territórios Eslavos e Polacos em posse da Alemanha, húngaros, romenos, moldavos e gregos com capital em Constantinopla).

No final, acabamos por ter aqui a denominada Europa de Leste, com excepção dos gregos e de Constantinopla.

Aliás chega a apelar ao Czar nas Confissões para realizar essa federação pan eslavista.

§ 3. O anarquismo

Quando a ordem política entope os canais legítimos de acção construtiva, as inteligências activas ficam num impasse. Quando se juntam a experiência da culpa pela miséria social, a vontade de reformar e a experiência de impotência, um indivíduo de moral exigente podes ser levado ao desejo de auto-sacrifício. O acto terrorista é um sacrifício em sentido duplo: o terrorista arrisca a vida fisicamente, porque será executado se for apanhado; em segundo lugar, e mais importante, o terrorista sacrifica a sua personalidade moral porque comete um assassinato.

O terrorismo como modelo moral é um sintoma da doença em que o mal assume a forma de espiritualidade.

Com Kropotkin torna-se explícita a necessidade de destruição das instituições: Ao criarem a dependência do homem, as instituições políticas e económicas transformaram-se em fonte do mal; a sua destruição por uma revolta social permitirá reconstruir a sociedade.

Esta posição esclarece a necessidade sentida por Bakunin na destruição das instituições: a luta dele contra o Cristianismo não será mais uma luta contra a instituição Igreja?

Uma terceira posição quanto ao anarquismo é a de Tolstoi: Tolstoi fundou o anarquismo numa ética cristã evangélica e achava que a salvação não resulta de uma mudança de instituições; as novas instituições não substituem a mudança do coração. A reforma não resulta de conspirações e revoluções; tem que ser efectuada por esclarecimento e persuasão, despertando as consciências, pelo exemplo de vida e, se necessário, pela resistência passiva aos mandamentos do estado não cristão.

Gandhi aproveita das ideias de Tolstoi um conhecimento da rebelião civil e resistência passiva como armas políticas contra as autoridades governamentais.

Tal como Tolstoi, Gandhi introduz a ética escatológica como uma arma política; a pequena diferença é que Tolstoi assentava o seu anarquismo no prestígio do Evangelho, enquanto Gandhi adquiriu uma auréola de santidade oriental.

§4. Fundar o reino novo

Bakunin era prodigioso a montar organizações, sobre as quais não se sabe se existiam de facto ou apenas na cabeça dele: Até que ponto essas organizações existiam realmente ou somente na sua imaginação nem sempre se pode comprovar.

Em 1868 funda a Aliança Internacional Social-Democrata que tinha como objectivo ser o Estado Maior da 1ª Internacional, sob a capa de formar um núcleo de revolucionários.

Aí choca – mais uma vez - com Marx (já chocavam no campo das ideias: Marx quer ordem / Bakunin quer destruição; Marx quer um sistema científico / Bakunin acusa-o de autoritarismo; Marx fala proletariado e sobretudo dos trabalhadores e ainda dentro destes dos operários / Bakunin refere as massas; Nos anos 60,(século XIX) quando Marx inicia a organização internacional do proletariado, Bakunin ainda escreve panfletos a glorificar o salteador russo.)

Bakunin e Marx queriam um movimento revolucionário para homens sem país, e por meio da organização revolucionária queriam criar um país para este povo desabrigado.

A ideia de um homem sem país cuja pátria é a revolução não surge entre trabalhadores; é uma projecção do intelectual isolado que se transforma em líder das massas.

Marx criou uma doutrina que servia como a escrita sagrada do apostolado; como organizador foi fraco. Lenine refinou a doutrina, e criou uma organização centralizada implacável. Como estadista aproveitou bem o seu momento, enxertando a revolução dos trabalhadores internacionais na revolução camponesa russa. Estaline constrói a revolução internacional dentro do seu povo, no que se chama por vezes o "Thermidor" da revolução russa. Mas como movimento internacional, a revolução chegara ao fim; os partidos comunistas nos países ocidentais são instrumentos do novo estado russo.

Diferente era a posição de Bakunin: Bakunin confia no carisma. Mesmo quando a concepção é ditatorial e centralista quer a transformação da personalidade. Além disso, nunca concebeu um “estado dentro do estado” que fosse o futuro núcleo do poder após um golpe de estado; criou instrumentos para a destruição das instituições existentes que, após a vitória, seriam substituídas pela vida federal livre do novo povo revolucionário.

Dado o desinteresse pelas instituições permanentes, a actividade de Bakunin move-se na atmosfera do fantástico.[…] O elemento do fantástico radica na doença do espírito que constitui a crise revolucionária e relaciona-se com a “magia radical”. Na existência espiritual saudável, a acção é moldada pela substância espiritual que pretende comunicar, transformando a substância potencial em realmente comum. Por exemplo, na República, Platão aguarda pela receptividade à sua visão mística; quando tentou concretamente fundar uma cidade modelo o filósofo rei ficou-se pelos limites da academia. Em Bakunin, a acção é determinada pela vontade de uma existência pseudo espiritual; como falta a substância orientadora a comunicar, as tentativas sucedem-se de maneira irresponsável.

Nas suas organizações Bakunin vai criar estruturas piramidais sucessivas, as quais vão ser utilizadas por Marx: a organização em pirâmide ressurge na situação revolucionária: (1) a massa da humanidade reaccionária, que não serve para nada; (2) a parte eleita da humanidade, os "trabalhadores”, que são o sal da terra; (3) os operários, que são o grupo mais avançado dos trabalhadores; (4) o partido comunista, vanguarda do proletariado; (5) o círculo interno dos líderes dentro do partido, que culmina no politburo; (6) a estratosfera dos pais fundadores, Marx e Lenin.

§ 5. O caso Nechaiev

A revolução tem um começo e um fim, a fase de destruição e a de reconstrução. O revolucionário verdadeiro não tem planos de reconstrução. Ao chegar o momento amargo da luta; "o nosso alvo é a destruição completa de todos os laços sociais." A geração actual tem que destruir as circunstâncias abomináveis em que vive; a reconstrução é tarefa reservada para forças mais puras que hão-de surgir." Para o revolucionário, é um crime contemplar o futuro nebuloso; seria um obstáculo ao curso da destruição. "Numa causa prática, seria um abuso inútil do espírito." É preciso dedicar-se à destruição permanente, num crescendo que não deixará em pé qualquer forma social. "Chamarão a isto terrorismo! Mas devemos permanecer indiferentes a esses uivos e não participar em acordos com os que estão destinados a morrer!" (in "Os Princípios da Revolução")

Bakunin sondou as profundezas da existência negativa e compreendeu o salto místico do mundo para o paraíso. A destruição total é a contrapartida intramundana da "morte para o mundo" e a santificação da vida em preparação para a graça redentora da morte. A aniquilação intramundana não liquida apenas o mundo a destruir; também absorve a personalidade do revolucionário. Para o revolucionário, a acção significa a morte para o mundo velho mas, ao contrário do cristão, não verá o paraíso futuro. O sacrifício da existência não serve a purificação e a salvação da alma; a contracção revolucionária é o clímax da busca intramundana de imortalidade. Mas o revolucionário não vive para a fama na posteridade como os estadistas do renascimento e os homens de letras; assume o papel do salvador que inverte a queda e redime o mal. Mais que um filho, é um pai; Bakunin não promete o reino de Deus no além; promete o paraíso terreno. Deus expulsou o homem do paraíso; Bakunin irá devolvê-lo.

Alguns corolários do pensamento de Bakunin:
A religião é um instrumento de degradação - deve ser removida.
A propriedade privada é um instrumento de exploração – fora com a propriedade privada dos instrumentos da produção.
A burocracia é um instrumento de opressão – fora com o salariat.
O Estado é a fonte do mal – fora com o Estado.
A autoridade em geral restringe a liberdade – fora com a teologia, a ciência institucionalizada (contra Comte), e a liderança política institucionalizada (contra Mazzini).
Insistência de Bakunin no federalismo como a lei estrutural da sociedade futura.
Se dermos ao homem a possibilidade de praticar o mal, se lhe alimentarmos a vaidade, a ambição, e a cupidez à custa de outro, o homem praticará o mal.

O Satanismo de Bakunin

A primeira ideia de Dieu et l'Ètat e do apêndice ao Fantome Divin é a inversão satânica da Queda. Bakunin inverte toda a narrativa do Génesis: "Deus quis privar o homem da consciência de si; quis que ele permanecesse eternamente um animal de quatro patas, prostrado perante Deus eterno, seu criador e mestre. Mas então veio Satã, revolucionário, o eterno revoltado, o primeiro “libre penseur” e emancipador do mundo. Envergonha o homem pela sua ignorância e obediência bestial; emancipa-o e imprime-lhe na fronte o selo da liberdade e da humanidade, persuadindo-o a desobedecer e comer o fruto do conhecimento." E Bakunin continua: "O homem é emancipado (…) A história do desenvolvimento humano foi iniciada pela desobediência e o conhecimento (ciência), ou seja, pela revolta e pelo pensamento.”

Até ao fim, Bakunin recusa definir qualquer lei ou ideia articulada da sociedade. A ordem é determinada por sucessivos acordos da alma individual revoltada com os sentimentos das massas. A liberdade permanece em tensão entre a revolução contra a autoridade e a imersão no povo. Nas últimas obras, Bakunin recorre frequentemente à imagem do fluxo da natureza: a humanidade na história é um mar em movimento e o homem está na crista da onda. Talvez este misticismo final da revolução como imersão no fluxo natural da humanidade seja especificamente russo. Mas a última palavra de Bakunin é idêntica à primeira em 1842: o “retorno interno” deve ser substituído pela revolução política; a orientação espiritual pelos "interesses reais" das massas; e a renovação da alma pela imersão na revolução popular.

Nota: todos os itálicos sem indicação de obra ou autor são do livro e capítulo em análise.

Uma leitura de Eric Voegelin “A Idade Contemporânea”, Livro 26, Cap.4 - Existência Revolucionária: Bakunin

As Religiões Políticas


Uma consideração religiosa do nacional-socialismo deveria partir do pressuposto que possa existir Mal no mundo; e não o Mal como um modo deficiente do ser, como um negativo, mas como uma verdadeira substância e uma força efectiva no mundo. Face a uma tal substância, não apenas moralmente má, mas também religiosamente maléfica, satânica, a oposição não pode ser conduzida senão a partir de uma força igualmente poderosa, mas religiosamente boa. Não se pode combater uma força satânica somente com moralidade e sentimentos de humanidade.

Eric Voegelin, Prefácio de Dezembro de 1938