26 de novembro de 2007

O Cego de Maio


Conheceis o Cego de Maio?
Foi um poveiro. Era um Neptuno baptizado. Não era o tridente a arma com que comandava as ondas, mas a sua alma plena dum superior destino.
Sabei que aos gritos de socorro que o náufrago erguia num clamor anónimo, respondia no seu coração um eco de lembranças piedosas, de orfandades, de viuvezes, e na sua alma nascia o direito de emendar a existência, a certeza da sua superioridade de comoção sobre a bruteza do oceano convulso.
E num barquinho ele se partia, assaltado pelas ondas, guardado pela certeza da sua missão...
Voltava coberto de espuma, a sua alma era a Alegria do dever omnipotente.
Esse herói era sereno, duma mansidão patriarcal.
Certo dia, um pescador importunou-o a ponto do Cego lhe prometer castigo.
Um filho do importuno, puxando-lhe pelo casaco, disse – Cego, não batas no meu paizinho…
O herói tomou a criança, beijou-a e largou a fugir precipitadamente…
Não conheço gesto humano que tanto valha, quer dizer, que tão claramente exiba a divindade dramática do homem.
Há frases, isto é um acto.
Nunca a carne foi tão nitidamente pensamento, ansiedade metafísica.
Homens houve que souberam pôr, em concreto, a alma acima do corpo.
Sob os olhos da Alegria originária, da unidade amorosa, aqui, é na própria carne que se passa o drama, é ela que actua este pensamento: foge à tentação, foge de ti mesma…
Maravilhoso exemplo de complexidade das relações entre o ser e a aparência: o herói quer em si a alma infantil a que obedece e vê que só na ausência do corpo ele possuirá a sua presença.Quem ensinou a este rude pescador a dialéctica da aparência e da realidade?
E, no entretanto, onde a aparência inverte, ele sabe, em carne e osso, refazer a realidade!
As recônditas harmonias das cousas descobertas pelo pensamento, as harmonias do pensamento e das cousas, o mundo resolvendo-se em teorias científicas, a ciência adivinhando o mundo, tudo é ultrapassado pela simples atitude dum humilde homem do mar, que quer estar de acordo com uma criança!

Leonardo Coimbra, "A Alegria, a Dor e a Graça" in "Obras Completas", Vol. III, págs. 46-47, Lisboa, UCP/INCM, 2006

20 de novembro de 2007

Agostinho - Confissões


E, admoestado a voltar daí para mim mesmo, entrei no mais íntimo de mim, guiado por ti, e consegui, porque te fizeste meu auxílio. Entrei e vi com o olhar da minha alma, seja ele qual for, acima do mesmo olhar da minha alma, acima da minha mente, uma luz imutável, não esta vulgar e visível a toda a carne, nem era uma maior como que do mesmo género, como se ela brilhasse muito e muito mais claramente e ocupasse tudo com a sua grandeza. Ela não era isto mas outra coisa, outra coisa muito diferente de todas essas, nem tão-pouco estava acima da minha mente como o azeite sobre a água, nem como o céu sobre a terra, mas era superior a mim, porque ela própria me fez, e eu inferior, porque feito por ela. Quem conhece a verdade, conhece-a, e quem a conhece, conhece a eternidade. O amor conhece-a. Oh, eterna verdade e verdadeiro amor e amorosa eternidade. Tu és o meu Deus, por ti suspiro dia e noite. E logo que te conheci, tu arrebataste-me para que eu visse que é aquilo que via e que eu não era ainda de molde a poder ver. E deslumbraste a fraqueza do meu olhar, brilhando intensamente sobre mim, e estremeci de amor e horror: e descobri que eu estava longe de ti, numa região de dissemelhança, como se ouvisse a tua voz vinda do alto: «Eu sou o alimento dos adultos: cresce e comer-me-ás. Tu não me mudarás em ti, como o alimento da tua carne, mas tu serás mudado em mim.» E reconheci que por causa da iniquidade corrigiste o homem e fizeste consumir-se a minha alma como uma aranha, e disse: «Porventura nada é verdade, já que ela não está difundida pelos espaços dos lugares, nem finitos nem infinitos?» E tu clamaste de longe: «Pelo contrário eu sou o que sou.» E ouvi, tal como se ouve no coração, e já não havia absolutamente nenhuma razão para duvidar, e mais facilmente duvidaria de que vivo do que da existência da verdade, a qual se apreende e entende nas coisas que foram criadas.

19 de novembro de 2007

A natureza do direito - 2


A existência humana é ontologicamente social, não obstante todos os conflitos entre o homem e a força impessoal do campo social, em que ele existe como uma parte. A existência na sociedade, por força do nascimento e educação numa família, é ontologicamente, não por escolha, a maneira da existência humana. A alternativa à existência numa sociedade concreta – além de não ter nascido de todo, ou de ter cometido suicídio – não é a existência solitária, mas a existência numa outra sociedade concreta. A organização da vida pessoal do homem em sintonia com a verdade da ordem apenas é possível dentro da estrutura da ordem social. Uma sociedade tem uma raison d’être, por conseguinte, apenas na medida em que ela permite aos seus membros ordenar as suas vidas na verdade.
Eric Voegelin

18 de novembro de 2007

Comunidades cristãs saudaram Dalai Lama

Vossa Santidade,

É uma honra para mim, dirigir-me a vós em nome das comunidades cristãs em Lisboa. Elas estão aqui representadas pelos Pe. Alexandre Bonito, da Igreja Ortodoxa, Pe. Diamantino Lemos, da Igreja Lusitana (Comunhão Anglicana), Dr. David Valente, Secretário Geral da Igreja Presbiteriana, e eu próprio, da Igreja Católica. Desejo-lhe as mais calorosas boas-vindas, da parte do Cardeal Patriarca, D. José Policarpo, que se recorda com amizade do vosso ultimo encontro, aquando da vossa última visita, em 2001.

1. A vossa presença aqui - este encontro de representantes de várias tradições religiosas na mesquita central de Lisboa - é um notável sinal dos tempos em que vivemos. As coisas mudam com grande velocidade. E estas mudanças trazem consigo medo e insegurança para alguns, e entusiasmo para outros que buscam algo de novo. Penso que este encontro apela a ambas estas tendências, dentro das nossas comunidades. Reconhecemos as nossas diferenças. Elas são por vezes profundas e significativas. Não desejamos escamoteá-las. Cada uma das nossas tradições é uma peça única do nosso património cultural mundial, trazendo com ela séculos de sabedoria e espiritualidade. Mas, apesar de todas as nossas diferenças, tensões e, por vezes, inimizades, fomos capazes hoje de dar uns aos outros a mão da amizade, e de exprimir o nosso compromisso comum com a construção da paz entre os povos do mundo.

2. Rezo para que as Igrejas Cristãs em geral, e a Igreja Católica em Portugal, tenham um coração terno e humilde, para que sejamos capazes de acolher entre nós, como irmãos e irmãs em Deus, todos os imigrantes que buscam uma vida melhor, qualquer que seja a sua religião. Desejo que sigamos o caminho da rectidão.

3. Rezo também para que Vossa Santidade seja abençoada, e que o vosso coração esteja sempre pleno de luz. Que a paz esteja convosco e com o vosso povo no Tibete.

Discurso feito na Mesquita Central de Lisboa, pelo Padre Peter Stilwell

Ciência versus Religião por Sto Agostinho

Quando me apercebo de que um cristão, este ou aquele irmão, ignora essas coisas e as confunde umas com as outras, ouço pacientemente esse homem a expor a sua opinião e não vejo em que lhe é prejudicial se não sabe, porventura, o lugar e o modo de ser da criatura corporal, desde que não creia em coisas indignas a teu respeito, Senhor, criador do universo. Prejudica-o, porém, se pensa que isto pertence à essência da doutrina da piedade e ousa afirmar pertinazmente aquilo que ignora. Mas mesmo tal enfermidade é suportada pela mãe caridade no berço da fé, até que o homem novo chegue ao estado de homem perfeito e não possa ser arrastado pelo vento de qualquer doutrina.
Santo Agostinho, Confissões, Livro V, V. 9

9 de novembro de 2007

Admitir o óbvio

De todos os lados da sociedade dita laica, se ataca e menospreza o papel da religião e da Igreja Católica. Sabe bem de vez em quando ler o que os muitos católicos já sabem... o papel da Igreja é crucial.

Aqui fica um trecho da notícia no DN de hoje sobre o papel da Igreja nas emergências e na assistência aos mais necessitados.

Em 1998, durante o conflito na Guiné-Bissau, a Igreja Católica foi, durante
algumas semanas, a única organização a funcionar de forma eficaz, em vários
pontos do país. A actuação dos religiosos, nessa altura, salvou numerosas vidas,
sobretudo de crianças, o elo mais fraco nestes conflitos.