1 de dezembro de 2004

A Igreja: O meu lar maternal


As experiências da vida têm-me ajudado a compreender a Igreja mais profundamente e a apreciá-la por aquilo que ela é. Tem-me acontecido, por diversas vezes, ficar como que arrancado das minhas raízes humanas. O cativeiro durante a guerra, primeiro numa fortaleza e depois num campo constituiu uma experiência de exílio num clima de suspeição. Relacionado com esta não consigo deixar de pensar no tempo que passei num hospital, que apesar da qualidade do tratamento que recebi, é um pouco como estar na prisão. No decurso desses diversos períodos de tempo, compreendi o lugar profundo que é ocupado nas nossas vidas por um laço afectivo com um contexto familiar, a que damos como verdadeiro nome: lar.

Isto é algo substancialmente diferente de uma mera ligação sentimental. É algo que vai para além da formulação de ideias claras, algo que envolve a incorporação vital do nosso eu mais profundo, algo pré-reflexivo e no entanto pleno de verdade; algo que começou antes de nós, que está para além de nós e que, no entanto nos envolve e nos sustenta em tudo o que fazemos. Vivemos num “ambiente” como o peixe na água, mas o ambiente também nos penetra, a sua trama está emaranhada na rede das nossas vidas.

Nós, os seres humanos também temos uma necessidade vital de não estarmos sozinhos. Aristóteles disse que um solitário é mais ou menos que um homem: aut bestia, aut deus, uma besta ou um deus, mas não um humano. Para o comum dos humanos nada destrói mais a sua humanidade que a solidão total; não o momento de solidão que pode, pelo contrário, acolher a plenitude e satisfação, mas o momento de em que se é arrancado pela raiz, de isolamento, de abandono. E se essa solidão é levada até ao ponto de degradação, estaremos na antecâmara da morte.

Por estas razões Jesus prometeu-nos que não nos deixaria órfãos, sem um lar. Órfãos, nós os Cristãos nunca o seremos; pois há um Pai que está no céu. Mas Jesus pensou também na nossa solidão terrena. No seu último testamento, cujos ecos mais profundos enchem os capítulos 13 a 17 de S. João, ele tomou precauções para os tempos da sua ausência corpórea, prometendo-nos o Espírito e dando-nos um apostolado.

As circunstâncias que rodearam a sua morte, e mais uma vez S. João é a testemunha solene, são igualmente significativas. Jesus entregou o Seu último suspiro, emisit spiritum, a João, o discípulo e a Maria, a Mãe, que representam a Igreja na base da cruz. Depois o soldado trespassou o lado de Jesus adormecido na morte e dela correu água e sangue. Os Padres da Igreja e os escritores da Idade Média viram nisto, de forma unânime, um símbolo dos sacramentos sobre os quais qual a Igreja foi construída. A água simboliza o Espírito e o sangue o Baptismo e a Eucaristia.

Aqui está o que Jesus nos deixa: o Espírito e a Noiva. Tal como Eva foi formada a partir do lado de Adão que dormia, assim o foi a Igreja, a nova Eva, formada pelo lado de Cristo crucificado. Em ambos os casos, os símbolos significaram a unidade de duas pessoas chamadas para formar uma única carne, um único corpo, no amor dos esposos destinado para a fecundidade da maternidade.
A reflexão religiosa, e se me permitem, teológica dos Antigos é ao mesmo tempo muito simples e muito profunda. Define-se a si própria em termos básicos da vida e da maternidade tal como Maria que, fecundada pelo Espírito Santo, deu ao mundo Jesus, assim o fez também a Igreja de Pentecostes ao gerar Cristãos para o apostolado através do espaço e dos séculos dos séculos. Mas de Sião há-de dizer-se: "Todos lá nasceram; o próprio Altíssimo a fortaleceu." (Sl 87, 5).

"A Igreja é," como diz Hugo Rahner de forma magnífica, "a Maria da história do Mundo." Tal reflexão é completada pela referência ao mistério da Redenção, dada na cruz, pela qual a Igreja é, por nascimento e por natureza, sacerdotal, consagrada a oferecer e a ser oferecida; ela realiza-se a si própria no acto eucarístico.

Jesus deixou-nos, mas, de modo a ficar ainda connosco durante a sua ausência física, deu-nos o Seu Espírito e a Sua Noiva, o Paráclito e a Igreja. Juntos preparam o Reino e juntos pronunciam aquela palavra feliz na qual a Revelação acaba "Vinde!" (22, 17).

Já não estaremos sozinhos, já não estaremos sem lar. O Espírito é o nosso Consolador, o nosso Defensor, o nosso Protector. Quem incessantemente auxilia o homem no sofrimento do mundo, quem lhe permite ser um discípulo do Evangelho. Temos de invocar com frequência este Espírito de Jesus, confiar n’Ele, atribuir-Lhe o bem que pode passar por entre “as nossas mãos vazias”.

Tal como o Espírito é um princípio de unidade extrínseca, a Sua presença é tão intrínseca que o Seu testemunho é quase indissociável dos movimentos da nossa própria mente. Ele é íntimo e pessoal: não “privado”, mas dado, como diz S. Paulo, nos nossos corações. É Ele que junta o “único com O Único, eu e o meu Criador” nos termos formulados por Newman. E é Ele que é " o lar espiritual” para nós irmãos e irmãs na Igreja: a fundação e o princípio da vida Cristã.

Indubitavelmente, há muita estreiteza de espírito e imaturidade, muitos trabalhos atamancados na Igreja. Vemos em demasiados círculos quão impreparada está a Igreja para dar respostas às verdadeiras questões que lhe são postas pelos homens. Mas tudo isso, por mais pesado que possa ser o fardo que carregamos, não tem importância quando comparado com o que podemos encontrar e encontramos de facto na Igreja.

A igreja tem sido, e é, o lar da minha alma, a mãe do meu ser espiritual. Ela oferece-me a possibilidade de viver com os santos; e quando é que ela me impediu de levar uma vida Cristã? No meio da dúvida e das tempestades, a Igreja é sempre digna da graça que habita nela e na multidão de testemunhas de que fala a Epístola aos Hebreus, graças à sua memória e à sua consciência de si que são a sua tradição viva e que operam de tal modo que a Igreja nunca sucumbe à dúvida.

Sim, podemos deplorar certas reacções de Roma: o tom e aspereza que irritam mas cuja perspicácia não podemos deixar de reconhecer. Oiçam o testemunho do Padre Lacordaire cuja eloquência não foi diminuída mesmo pela precisão das fórmulas e condenações de Roma que lhe foram pessoalmente dirigidas “ Ó Roma, depois de tantos séculos, encontrei-te íntegra, sempre virgem, sempre mãe, sempre mestra. Colocada entre as tempestades da Europa, nunca houve em ti qualquer incerteza sobre ti mesma ou lassitude"

É, tudo isto, demasiado pomposo, é um quadro demasiado idealizado? Talvez, mas nestas expressões há muita verdade.

Não consigo encontrar palavras suficientes para agradecer à Igreja por me terem dado vida, por me terem criado, no sentido mais forte do termo, num sentido de ordem e beleza.

Ela pôs ordem na minha vida, no meu espírito. Verdade: Existe um certo gosto pela ordem, ou melhor, um gosto por certa ordem que é perfeitamente capaz de erradicar a fome e a sede de justiça. Mas a minha Igreja repudiou tal traição do Evangelho. Também é verdade que o Catolicismo se atravancou a si próprio de coisas sem importância e se rodeou com muitas mediocridades estéticas perturbadoras. Mas está a libertar-se delas bastante bem.

Fica então a beleza incomparável da liturgia em todas as suas formas, em todas as suas fórmulas, na sua divisão de tempo ao longo do fio dos dias e das estações. Não revivemos já muitas vezes a experiência de Agostinho que recordou nas Confissões a sua frequência da Igreja de Milão: “Quanto não chorei, fortemente comovido, ao escutar os hinos e os cânticos, ressoando maviosamente na Vossa Igreja, suave sonantis ecclesiae tuae vocibus commotus acriter" (IX, 6, 14). Esteticismo? Tal expressão poderia emprestar-lhe tal carga, mas também poderia ser perfeitamente autêntica e apropriada, se é verdade que o homem é um todo e que se insere ele próprio num lar através da sua sensibilidade e do seu coração, tanto como através das suas ideias.

O meu lar, a Igreja, tem sido um local seguro e pacífico para a minha fé e para as minhas orações. E, porque não? Algumas mensagens, que têm o seu elemento de verdade, falam hoje em nome da inquietude, parece que um homem que não mostra impaciência, que não é atormentado por problemas, é um preguiçoso ou um ingénuo e que a agitação e a ansiedade é a atitude intelectual normal. É verdade que uma certa calma podia ser equivalente a insensibilidade, que uma certa paz podia ser sinal que traímos a nossa vocação, que nos fornecemos um álibi ou mudámos subitamente de assunto. É dos ímpios que o Salmo diz “Não sofrem as contrariedades da vida, nem são atormentados como os outros homens.” (73, 5).
Há uma forma de nos abrigarmos que seria uma forma de fraude. Mas uma vez que reconheçamos isto, não podemos aprovar o preconceito “a priori” que não há paz para o homem, nem a mania de criticar tudo que esteja relacionado com confiança serena dentro do quadro da Igreja. Mas a liturgia não nos fala a linguagem da inquietude: muito pelo contrário, fala da paz e da graça que incessantemente implora. "Ut ecclesia tua tranquilla devotione laetetur!" ("que a Tua Igreja possa, em devoção tranquila rejubilar!").

Antigamente, as nossas Igrejas eram, legalmente, locais de refúgio. Não deviam elas transformar em realidade esta vocação de uma maneira nova, adaptada ao homem moderno – exausto como está da competição, esmagado pela complexidade de tudo, enervado pelo estridor, intoxicado pela publicidade indiscreta, insidiosa e agressiva? Ah! Abençoada seja a paz do meu lar – a Igreja!

Pe. Yves Congar, OP (traduzido do inglês com autorização de http://www.jknirp.com/)

2 comentários:

Fernando Cassola disse...

Força João, continua ...

Anónimo disse...

intiresno muito, obrigado