29 de agosto de 2007

Ratzinger e a Liturgia


O segundo grande acontecimento no início de meus anos de Ratisbona foi a publicação do missal de Paulo VI, com a interdição quase completa do missal anterior, depois de uma fase de transição de cerca de seis meses. O fato de que, depois de um período de experiências que não raro haviam desfigurado profundamente a liturgia, se voltasse a ter um texto litúrgico obrigatório, devia ser saudado como algo de certamente positivo. Mas fiquei pasmo com a interdição do missal antigo, uma vez que nunca ocorrera algo parecido em toda a história da liturgia. Deu-se a impressão de que isso fosse completamente normal. O missal anterior fora realizado por Pio V em 1570, dando seqüência ao Concílio de Trento; era, pois, normal que, depois de quatrocentos anos e um novo Concílio, um novo papa publicasse um novo missal. Mas a verdade histórica é outra. Pio V limitara-se a mandar reelaborar o missal romano então em uso, como no decurso vivo da história sempre ocorrera ao longo de todos os séculos. Não diferentemente dele, também muitos dos seus sucessores haviam novamente reelaborado esse missal, sem nunca contrapor um missal a outro. Sempre se tratou de um processo contínuo de crescimento e de purificação, em que, porém, a continuidade jamais era destruída. Não existe um missal de Pio V que tenha sido criado por ele. Existe só a reelaboração por ele ordenada, como fase de um longo processo de crescimento histórico. O novo, depois do Concílio de Trento, tinha outra natureza: a irrupção da reforma protestante ocorrera sobretudo sob a forma de "reformas" litúrgicas. Não havia simplesmente uma Igreja católica e uma Igreja protestante uma ao lado da outra; a divisão da Igreja deu-se quase imperceptivelmente e teve a sua manifestação mais visível e historicamente mais incisiva na mudança da liturgia, que, por sua vez, foi muito diversificada no plano local, tanto que as fronteiras entre o que ainda era católico e o que não mais o era, muitas vezes eram muito difíceis de definir. Nessa situação de confusão, possibilitada pela falta de uma norma litúrgica unitária e pelo pluralismo litúrgico herdado da Idade Média, o Papa decidiu que o Missale Romanum, o texto litúrgico da cidade de Roma, uma vez que seguramente católico, devia ser introduzido em todos os lugares onde não se pudesse reivindicar uma liturgia que datasse de pelo menos duzentos anos antes. Onde isto ocorria, podia-se conservar a liturgia precedente, dado que o seu caráter católico podia ser considerado certo. Não se pode de fato, pois, falar de um interdito em relação aos missais anteriores e até aquele momento regularmente aprovados. Agora, ao contrário, a promulgação da interdição do missal que se desenvolvera ao longo dos séculos, desde o tempo dos sacramentais da antiga Igreja, implicou uma ruptura na história da liturgia, cujas conseqüências só podiam ser trágicas.
Como já ocorrera muitas vezes antes, era totalmente razoável e estava plenamente em linha com as disposições do Concílio que se chegasse a uma revisão do missal, sobretudo em consideração da introdução das línguas nacionais. Mas naquele momento ocorreu algo mais: fez-se em pedaços o edifício antigo e se costruiu um outro, ainda que com o material de que era feito o edifício antigo e utilizando também os projetos anteriores. Não há nenhuma dúvida de que esse novo missal continha em muitas das suas partes autênticas melhorias e um real enriquecimento, mas o fato de que ele tenha sido apresentado como um edifício novo, contraposto ao que se formara ao longo da história, que se proibisse este último e se fizesse de certo modo a liturgia aparecer não mais como um processo vital, mas como um produto de erudição especializada e de competência jurídica, trouxe-nos danos extremamente graves. Foi assim, de fato, que se desenvolveu a impressão de que a liturgia seja "feita", que não seja algo que existe antes de nós, algo de " dado", mas que dependa das nossas decisões. Segue-se daí, por conseguinte, que não se reconheça esta capacidade decisional só aos especialistas ou a uma autoridade central, mas, em definitivo, cada " comunidade" queira fazer sua própria liturgia. Mas quando a liturgia se torna algo que cada um faz por si mesmo, ela não nos dá mais aquela que é a sua verdadeira qualidade: o encontro com o mistério, que não é um produto nosso, mas a nossa origem e a fonte da nossa vida. Para a vida da Igreja, é dramaticamente urgente uma renovação da consciência litúrgica, uma reconciliação litúrgica, que volte a reconhecer a unidade da história da liturgia e compreenda o Vaticano II não como ruptura, mas como momento evolutivo. Estou convencido de que a crise eclesial em que hoje nos achamos depende em grande parte do esboroamento da liturgia, que por vezes é mesmo concebida "etsi Deus não daretur": como se nela não importasse mais se Deus existe e se nos fala e nos escuta. Mas se na liturgia não aparece mais a comunhão da fé, a unidade universal da Igreja e da sua história, o mistério de Cristo vivo, onde é que a Igreja aparece ainda na sua substância espiritual?
Então a comunidade celebra apenas a si mesma, sem que isso valha a pena. E, dado que a comunidade em si mesma não tem subsistência, mas, enquanto unidade, tem origem para a fé do Senhor, passa a ser inevitável nestas condições que se chegue à dissolução em partidos de todo tipo, à contraposição partidária numa Igreja que se dilacera a si mesma. Por isso precisamos de um novo movimento litúrgico, que ressuscite a verdadeira herança do concílio Vaticano II.

Extraído do livro "La mia vita: ricordi, 1927-1977", Cinisello Balsamo: San Paolo, 1997,110-113.
Traduzido no site Bento XVI

Encontro em Lisboa

Foi o 17º encontro da Rede Europeia Igreja em Liberdade. Cristãos oriundos de vários países europeus, a quem a experiência mostrou que o mundo actual se constrói no ultrapassar das fronteiras: fronteiras culturais, políticas, religiosas, geográficas, históricas… Senti admiração por estes cristãos, moldados pela abertura e pela partilha, que têm a humanidade por horizonte.
Sinal de abertura, depressa se pede que seja constituído um atelier de trabalho sobre a África. Os laços entre a Europa e a África são muitos. Existem situações intoleráveis, como as do Darfur. São feitas propostas de informação e pressão ao nível das instituições europeias.
Em África há acções corajosas, realizadas por cristãos, por religiosos/as, há bispos que se empenham a favor da justiça. Bem como documentos, alguns dos quais são proféticos. É necessário divulgar as informações.
A minha intervenção, feita em conjunto com uma portuguesa, era subordinada ao tema “O povo de Deus num mundo em movimento”.
Tive esta oportunidade de ter diante de mim cristãos em liberdade, que encontram no seu caminho gente de todos os horizontes. Fazem a experiência decisiva que Jesus conheceu. O homem de Nazaré encontrou pessoas que, no quadro da Lei, nunca teriam oportunidade de encontrar Deus.
No convento dos Dominicanos, em Lisboa, a Eucaristia concluiu o encontro. Uma eucaristia de Pentecostes, com ritmos africanos, na qual cada um e cada uma pôde tomar a palavra na sua própria língua.
Partenia

24 de agosto de 2007

Benção para os divorciados que voltam a casar


Após a cerimónia na conservatória todos, família e amigos, se reúnem em casa dos recém-casados. Ficamos de pé, um pouco apertados, na grande sala de estar.
Os recém-casados, rodeados pelos filhos, têm esta bênção em grande apreço. Para eles é um acontecimento carregado de sentido. É por isso que tomam a palavra, não só para recordarem a sua situação, mas, sobretudo, para dizerem o que tencionam fazer desta nova etapa da sua vida.
As suas palavras têm um toque de liberdade. É verdade que estão em sua casa e, portanto, mais à vontade do que se estivessem numa igreja. Mas, acima de tudo, parece-me que, acima de tudo, as suas palavras estão marcadas pelo peso da sua experiência humana. Falam com humildade e conhecimento de causa.
Estamos todos presentes para que o seu casamento seja bem-sucedido.

É distribuída uma folha, pela qual nos guiamos para cantarmos, com todo o coração: "Encontrar na minha vida a tua presença".
Os noivos apresentam-me as alianças, que eu abençoo e eles dão um ao outro:
“Recebe esta aliança, como símbolo do nosso amor e da nossa fidelidade."
A assistência aplaude.
A breve celebração é concluída com palavras de paz:
“Que a paz esteja nesta casa. Que reine sempre entre vós."
A festa continua…
Jacques Gaillot, in Partenia

Martin Niemoller

Als die Nazis die Kommunisten holten, habe ich geschwiegen: ich war ja kein Kommunist.
Als sie die Sozialdemokraten einsperrten, habe ich geschwiegen: ich war ja kein Sozialdemokrat.
Als sie die Katholiken holten, habe ich nicht protestiert: ich war ja kein Katholik.
Als sie mich holten, gab es keinen mehr, der protestieren konnte.
Quando os nazis vieram pelos comunistas, eu fiquei calado: não era comunista.
Quando eles encarceraram os social democratas, eu fiquei calado: não era social democrata.
Quando eles vieram pelos católicos, eu não protestei: não era católico.
Quando vieram por mim, já não havia ninguém que pudesse protestar.
in http://www.mnge.de/v2_new/index.php?m=2002

Do Francisco (de Assis) para o António (de Lisboa)


Ao irmão António, meu bispo, o irmão Francisco
envia saudações.
Tenho gosto em que ensines aos irmãos a sagrada teologia, desde que, com o estudo, não se extinga neles o espírito da santa oração e devoção como está escrito na Regra.

Voegelin, visto por José Adelino Maltez (2)

As teses de Voegelin sobre o Direito inserem-se, sem dúvida, naquele grandioso movimento de regresso ao direito natural e à teoria da natureza da coisas que, depois do holocausto nazi e do terrorismo estalinista, nos obrigou à reperegrinação em torno da dignidade humana.
José Adelino Maltez, in Voegelin e a procura do direito natural, prefácio da Edição Portuguesa de “A natureza do Direito” de Eric Voegelin

Voegelin, visto por José Adelino Maltez

"…ele [Eric Voegelin] constitui, sem dúvida, uma das referências fundamentais do universo contemporâneo das ideias. Principalmente por ser um insigne representante da íntima ligação entre o pensamento europeu e o pensamento norte-americano do pós-guerra, à semelhança de outros gigantes, como Leo Strauss, Carl Friedrich e Hannah Arendt, que a euforia genocida das perseguições hitlerianas obrigou a uma travessia do Atlântico. Uma geração que manteve, nesse Novo Mundo, a arca dos segredos teóricos da liberdade europeia e ocidental, daquilo que o mesmo Voegelin considerou como a ciência clássica e cristã do homem, onde o fundo ateniense, platónico e aristotélico, reanimado pelo estoicismo romano e pelo vigor espiritual judaico-cristão, produziu aquele humanismo activista que ousou sempre nascer de novo, refazendo as sucessivas renascenças e promovendo aquelas regenerações que sempre visaram regressar para seguir em frente."
José Adelino Maltez, in Voegelin e a procura do direito natural, prefácio da Edição Portuguesa de “A natureza do Direito” de Eric Voegelin

Apologia de Sócrates


O que vós, cidadãos atenienses, haveis sentido, com o manejo dos meus acusadores, não sei; certo é que eu, devido a eles, quase me esquecia de mim mesmo, tão persuasivamente falavam.
Contudo, não disseram, eu o afirmo, nada de verdadeiro. Mas, entre as muitas mentiras que divulgaram, uma, acima de todas, eu admiro: aquela pela qual disseram que deveis ter cuidado para não serdes enganados por mim, como homem hábil no falar.
Mas, então, não se envergonham disto, de que logo seriam desmentidos por mim, com factos, quando eu me apresentasse diante de vós, de nenhum modo hábil orador? Essa me parece a sua maior imprudência, se, todavia, não denominam "hábil no falar" aquele que diz a verdade.
Porque, se dizem exactamente isso, poderei confessar que sou orador, não porém à sua maneira.
Assim, pois, como acabei de dizer, pouco ou absolutamente nada disseram de verdade; mas, ao contrário, eu vo-la direi em toda a sua plenitude. Contudo, por Zeus, não ouvireis, por certo, cidadãos atenienses, discursos enfeitados de locuções e de palavras, ou adornados como os
deles, mas coisas ditas simplesmente com as palavras que me vieram à boca; pois estou certo de que é justo o que eu digo, e nenhum de vós espera outra coisa. Em verdade, nem conviria que eu, nesta idade, me apresentasse diante de vós, ó cidadãos, como um jovenzinho que estuda os seus discursos. E todavia, cidadãos atenienses, isso vos peço, vos suplico: se sentirdes que me defendo com os mesmos discursos com os quais costumo falas nas feiras, perto dos bancos, onde muitos de vós tendes ouvido, e em outros lugares, não vos espanteis por isso, nem provoqueis clamor. Porquanto, há o seguinte: é a primeira vez que me apresento diante de um tribunal, na idade de mais de setenta anos: por isso, sou quase estranho ao modo de falar aqui. Se eu fosse realmente um forasteiro, sem dúvida, perdoaríeis, se eu falasse na língua e maneira pelas quais tivesse sido educado; assim também agora vos peço uma coisa que me parece justa: permiti-me, em primeiro lugar, o meu modo de falar - e poderá ser pior ou mesmo melhor - depois, considerai o seguinte, e só prestai atenção a isso: se o que digo é justo ou não: essa, de facto, é a virtude do juiz, do orador - dizer a verdade.

23 de agosto de 2007