26 de abril de 2005

O Cristão do Futuro por Karl Rahner


A Igreja em mudança

Não há dúvida que o Segundo Concílio do Vaticano, os seus procedimentos e debates, as diferenças de opinião que se tornaram aparentes, os relatórios de imprensa que os dissecaram e os exageraram, a existência de tendências e partidos então revelados, a luta por decisões desta forma e daquela, as alterações na liturgia e na lei subsequentemente decididas – todas essas experiências causaram uma profunda surpresa, inquietude e consternação em muitos círculos Católicos, até com uma extensão considerável entre o clero. O comentário, falsamente atribuído a um cardeal conservador, de que ele gostaria de morrer Católico, é meramente um pequeno, estranho sintoma. Outros Católicos aplaudiram o Concílio e o seu trabalho entusiasticamente como a longamente esperada e já realmente atrasada abertura, escancarando as janelas da Igreja para deixarem entrar algum ar fresco, e como uma reconstrução da velha fortaleza com as suas estreitas vigias numa casa, igualmente forte mas com grossas muralhas de vidro e com o mundo brilhando através delas, e no máximo pensaram que o “tempo” e resultados eram ainda muito modestos. Mas os primeiros tiveram uma inescapável impressão de profundo alarme.

A sua prévia experiência tinha-lhes mostrado a Igreja como uma torre inabalável nas _____ (seething waves) do tempo -- stat crux dum volvitur orbis – como a única autoridade com a coragem de manter princípios inalteráveis, como o estandarte dos eternos dogmas com a firmeza do granito, da persistente lei natural, da venerável tradição inquestionavelmente aceite e vivida, dos claros Sim e Não, dos princípios básicos os quais foram sempre conhecidos desde o início e apenas necessitam corajosamente de ser postos em prática, quer o mundo aprove ou não. Para eles precisamente a inamovível imutabilidade da doutrina e vida da Igreja parecia uma característica decisiva da Igreja Católica em contraste quer com as outras denominações Cristãs quer em geral com o espírito dos tempos. E agora eles têm a impressão que as pessoas estão a discutir tudo e nada, questionando tudo, que tudo está a cair, que a sua (talvez dificilmente conseguida) rígida adesão à doutrina, e acima de tudo a prática tradicional, da Igreja até ao mais pequeno detalhe do estilo da vida religiosa e secular, é desaprovada e quase desprezada pela Igreja e pelos seus representantes máximos. O amargo sentimento de ter sido deixado __________(in the lurch) pela Igreja, de ser como um objecto de censura perante os olhos do mundo de não-Católicos "que sempre o souberam", tentações contra a fé, desconfiança da segurança e confiabilidade das autoridades eclesiásticas, tais eram as consequências das “experiências Conciliares” deste género as quais de facto – não há dúvida acerca disto – foram bem ou mal praticadas por muitos Católicos.

Não é necessário ilustrar esta situação aqui no início das nossas reflexões com exemplos das questões ou procedimentos que deram origem à inquietude, uma vez que iremos entrar na matéria, tão longe como seja necessário e possível, quando formarmos um juízo sobre isso.

A situação em questão já se deve ter tornado clara. É o estado de aqueles que são eclesialmente conservadores em face da experiência de profundas alterações na Igreja. E neste contexto a palavra “conservador” significa em princípio algo bastante positivo, pois também inclui a coragem em afirmar continuidade, princípios claros, desapego de modas efémeras, fidelidade para com a Palavra de Deus que perdura para sempre, respeito pela tradição, por aquilo se desenvolveu organicamente, pela sabedoria e experiência dos nossos ancestrais.

O que se pode dizer deste estado de coisas? O que ensinou o Concílio, o que decidiu, o que fez a esse respeito, e o que é que ele não ensinou, decidiu, fez?
O que se pode dizer em relação à mutabilidade e imutabilidade da doutrina da Igreja e na moral e vida Cristãs? Essa é a questão com a qual nos ocuparemos aqui. Não estamos preocupados com as múltiplas alterações na Igreja que formam o tema principal da história da Igreja, por outras palavras alterações que foram impostas simplesmente na Igreja como consequência inevitável da inserção da Igreja num padrão total de forças historicamente operativas(Estado, civilização, etc.). Estamos preocupados (ocupados) com as alterações que a própria Igreja activamente leva a cabo na sua lei e doutrina, e na qual a Igreja se muda a ela própria, e não é meramente submetida a mudanças, embora seja claro que ambos os conjuntos de mudanças se afectam mutuamente.

A fim de avançarmos na obscuridade e complexidade da questão, e para providenciarmos uma linha de rumo para as nossas reflexões, uma distinção necessita primeiro de ser desenhada, mesmo se não podemos senão imaginar que os dois pólos de distinção estão ligados por múltiplas conexões do mais complicado tipo.

Referimo-nos à distinção entre eclesialmente vinculativo e, no caso mais estrito, ensinamento dogmaticamente definido da Igreja por um lado, e a lei e prática da Igreja no outro. Assumamos para este momento esta distinção como válida e o seu significado como entendido. Isto depreender-se-à do decorrer daquilo que iremos dizer, e será vista como necessária e profundamente justificada.